O Irã se torna cada vez mais um alvo do imperialismo conforme ganha força. Após a morte do presidente Ebraim Raisi em uma trágica queda de helicóptero, as baterias da imprensa burguesa se voltaram contra o governo revolucionário iraniano. A esquerda pequeno burguesa, como sempre, seguiu em sua coleira. Um dos grupos foi a revista Movimento, ligada ao PSOL, que publicou o artigo Irã: os mulás estão enfraquecidos, a luta do povo continua. É a tradicional campanha de apoiar o golpe do imperialismo fingindo ser um esquerdista – para os brasileiros, a campanha do PSTU contra Dilma.
Ele começa afirmando que a morte de Raisi não terá grande impacto no regime político, o que é fato. Mas então começa sua campanha contra o governo: “Raisi foi cotado para suceder o líder Ali Khamenei, de 85 anos, que está doente. Desse ponto de vista, sua morte enfraquece a Mularquia. Ela inflamará as tensões entre os clãs que compartilham o poder e a riqueza e abrirá caminho para futuras revoltas populares”.
Aqui, a Movimento caracteriza o governo iraniano como uma teocracia, afinal, o mulá é uma figura religiosa. Ao invés de se ater ao essencial, que é o fato de o Irã apresentar um dos nacionalismos mais radicais do mundo em seu governo, adere à campanha imperialista contra os muçulmanos. Seria o mesmo que na época de Chavez acusar o governo de “militarismo” porque a figura que liderava o movimento era um capitão.
Analisar um país pelo critério “ditadura X democracia” é a política do imperialismo. Visto que os países imperialistas são as “democracias”, eles sempre estão certos nessa luta. Os países oprimidos que são seus inimigos são as “ditaduras”. Já os países oprimidos aliados são, em geral, ignorados. Algum texto foi escrito sobre a monarquia do Cuaite? Ou sobre o Paraguai? As ditaduras são sempre os países em confronto com o imperialismo, como China, Rússia, Irã etc.
Então, o artigo nega que houve uma mobilização gigantesca no velório de Raisi. “A morte de Raisi foi certamente objeto de um luto nacional encenado pelas autoridades. O regime está se apressando para eleger um novo presidente em 28 de junho. Mas o que é importante lembrar são as comemorações espontâneas que eclodiram quando a morte de Raisi foi anunciada. De Teerã a Saqez, no Curdistão (cidade natal de Jina Mahsa Amini), a população expressou sua alegria mais ou menos abertamente, na ausência de qualquer chance de julgar Raisi por seus crimes”.
As tais comemorações espontâneas não foram vistas por quase ninguém. Já a multidão de centenas de milhares de pessoas em Teerã, Qom, Tabriz e outras cidades foi algo impressionante para qualquer país do mundo. Foi provavelmente a maior manifestação do ano, ultrapassando as do Iêmen por um dia. Os atos de rua simplesmente botam abaixo a tese de que Raisi seria um ditador impopular. Esse é o motivo que a Movimento precisa usar a tese absurda de que foram “encenações oficiais”. Só ignorando completamente esse fenômeno popular se pode levar adiante a tese da “ditadura dos mulás”.
Como já era de se esperar, a revista repete a campanha da Rede Globo e afirma que Raisi era o “açougueiro de Teerã”. “O currículo de Raissi explica em grande parte a aversão do público a ele e à República Islâmica. Na década de 1980, Raissi foi promotor público adjunto em Teerã. Sob as ordens de Khomeini, ele liderou a repressão e mandou executar cerca de dez mil prisioneiros políticos no final da guerra contra o Iraque”.
Aqui, o texto deixa claro que está contra a Revolução de 1979. Não considera legítimas as ações do governo revolucionário que, naquele momento, lutava uma guerra civil. A publicação tenta disfarçar como essa política é reacionária afirmando que é contra a monarquia e contra Khomeini também. Mas foi Khomeini quem derrubou a monarquia. Nenhuma outra força política na época levou a revolução tão longe quanto os mulás xiitas que a Movimento tanto critica. A revolução tem violência, qualquer grupo de esquerda entende isso. Alguém tem que fazer a repressão à contrarrevolução e, em geral, essas figuras são as mais revolucionárias, basta ver o caso dos jacobinos.
O texto afirma que a repressão seria a ala esquerda do movimento: “o objetivo do regime era eliminar qualquer possibilidade de dissidência e erradicar a geração militante que havia se oposto à ditadura do Xá, mas que também rejeitava a ditadura da República Islâmica. Vice-procurador, mas também carrasco, Raisi foi denunciado pelos sobreviventes dessa onda sangrenta como o homem que matava os oponentes com suas próprias mãos. Seu papel nas execuções de 1988 lhe rendeu o apelido de ‘Açougueiro de Teerã’.”
Seria preciso explicar onde estava essa ala esquerda durante a maior revolução operária da segunda metade do século XX. Se ela não cresceu e se tornou uma força capaz de enfrentar um grupo religioso, é porque sua política, na verdade, estava à direita do governo. As revoltas em meio a revoluções muitas vezes têm feições esquerdistas, veja o caso da revolta de Kronstadt na Revolução Russa.
E, ainda mais importante que isso, mesmo que seja tudo verdade, isso é irrelevante. Se Raisi era impopular em 1988, em 2024 ele havia se tornado uma das lideranças mais populares do país, um líder na luta contra o imperialismo. Na política, isso é comum. Vargas foi revolucionário em 1930, fascista em 1937 e nacionalista em 1951. Em cada momento, era preciso adotar uma política diferente em relação ao seu governo. O que aconteceu em 1988 só é relevante se tiver uma relação direta com a política de hoje, algo que não acontece.
O texto cita o movimento “woman, life, freedom” (mulher, vida e liberdade), uma espécie de “revolução colorida” organizada pelo imperialismo no Irã. A partir desse momento, o artigo consegue descer ainda mais o nível. Apoia abertamente a campanha golpista das ONGs no país e depois afirma: “os líderes de alguns Estados europeus ou Estados da região que, seguindo o exemplo da Turquia, ofereceram sua ajuda na esperança de encontrar Raisi vivo. Até mesmo a OTAN ofereceu suas condolências. Quando se trata de salvar um chefe de Estado, os líderes mundiais demonstram solidariedade, apesar de suas diferenças”.
Com um comentário solto, o artigo afirma que a OTAN é aliada do Irã! Com essa bússola política, é impossível lutar contra o imperialismo. A tese dessa esquerda é simples: “todos os líderes do mundo são inimigos do povo, viva a revolta popular!” E, na prática, ela funciona como “estes líderes específicos escolhidos pelo imperialismo são inimigos do povo, fora todos eles!”.
É obvio que o imperialismo norte-americano e o Irã são inimigos. Os EUA e “Israel”, inclusive, assassinaram diversas figuras importantes do Irã. A Movimento não consegue compreender que é justamente por lutar contra o imperialismo que Raisi era popular. Mas isso já era previsível. Para o PSOL, a popularidade vem das ONGs, e não da classe operária que apoia o regime desde a Revolução de 1979.