A novela “O Eterno Marido” (1870) do Fiódor Dostoiévski (1821/1881) faz parte daquilo que poderíamos dizer ser parte da fase de plena maturidade escritor russo. Foi lançada alguns anos após o seu conhecido “Crime e Castigo” (1866) e “O Idiota” (1869) e pouco antes daquele que foi o seu maior empreendimento literário “Os Irmãos Karamázovi” (1881), este último trabalho qualificado por Sigmund Freud como o mais importante romance de todos os tempos.
Essas obras dizem respeito ao período posterior à sua prisão na Sibéria, desde quando alterou a percepção de mundo que orientou os seus primeiros trabalhos.
Em Janeiro de 1850, Dostoiévski, aos 29 anos e com dois livros já publicados, ingressou na chamada Casa dos Mortos, presídio de regime especial na cidade siberiana de Omsk, município “sujo, militarizado e depravado no mais alto grau”, nas palavras do escritor.
Consta que desde 1847 Dostoiévski frequentava as reuniões de um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski, um político e filósofo russo que intentava implantar no seu país as ideias do socialista utópico francês Charles Fourier. O contexto histórico é o da Rússia dos czares, ou, mais especificamente, do reinado de Nikolai I (1825/1855), um período particularmente difícil para aqueles que tencionavam a reconstrução liberal do Império Russo.
O grêmio foi considerado subversivo e foi desmantelado em 23/04/1849. O processo judicial contra o grupo de Petrachévski foi concluído em novembro de 1949, com a condenação de Dostoiévski e outros na pena de morte. Nos últimos instantes antes da execução da pena capital, recebeu um indulto do Czar para atenuar sua punição para a cassação dos seus direitos civis e oito anos de trabalhos forçados em presídios siberianos.
Essa experiência impactante de quase morte e desterro na Sibéria foi posteriormente narrada no livro “Memórias da Casa dos Mortos” (1862) que foi um sucesso ao seu tempo.
Outro aspecto da vida pessoal do escritor que teve alguma repercussão no seu trabalho literário diz respeito ao seu vício por jogos.
No ano de 1862, durante uma viagem à Europa, teve contato com os cassinos que o levaram ao vício. As constantes dívidas obrigaram-no a fugir da Rússia no ano de 1867 para escapar dos seus credores. Foi durante este período de seu segundo exílio, entre 1867/1871, que escreveu “O Eterno Marido”; como no caso de diversas outras publicações, o livro foi encomendado pelos seus editores e escrito portanto por razões estritamente financeiras.
Ainda assim, temos nessa composição todos os elementos que credenciam Fiódor Dostoiévski ao mais alto ponto da literatura universal. Os temas tradicionais do escritor lá estão expressos, como o caos e a dissolução familiar, os sentimentos persecutórios, a humilhação gratuita, o sadismo, a ganância, a loucura e a doença. Há no romance as cenas febris e dramáticas, a atmosfera explosiva, os diálogos socráticos e, acima de tudo, o estudo da psique. Se o psicólogo, mais do que é um mero terapeuta, é literalmente “o estudioso da psique”, então Dostoiévski, talvez mais do que um escritor, foi um psicólogo.
O Eterno Marido
A história versa sobre o reencontro entre o marido traído e o homem responsável pela traição, nove anos após seu último contato e alguns meses após o falecimento da mulher com quem se relacionaram.
Vieltchâninov, o amante, é um belo homem de 39 anos que está de passagem em São Petersburgo para cuidar de assuntos pessoais relacionados a uma das três grandes heranças que receberia em vida.
Ao rodar pelas ruas da cidade, percebe estar sendo seguido por pessoa que lhe causa desde o início uma irritação, ainda que não pôde distinguir de quem se tratava. A recordação do passado vai sendo enunciada aos poucos, sua memória é fragmentada pelos traços daquela pessoa que encontrava na rua sem poder se lembrar de imediato de quem se tratava. Há a busca pelo fio condutor do passado que atribuísse explicação ao sentimento de irritação em ver o “eterno marido”:
“Algo pareceu começar a mover-se em suas recordações – algo assim como uma palavra conhecida que, por algum motivo, de repente esquecemos, mas que buscamos lembrar com todas as forças: conhecemos essa palavra muito bem, e sabemos que a conhecemos; sabemos o que significa e tateamos ao redor; mas a palavra não quer de modo algum vir-nos à memória, por mais que lutemos!”.
Finalmente Páviel Pávlovitch (esse é o nome do “eterno marido”) apresenta-se à Vieltchâninov e passa a travar relações, inicialmente amistosas, com o desafeto, sugerindo ao leitor o desconhecimento da infidelidade conjugal.
No decorrer da história, descobrimos que Páviel sabia de toda a verdade, desde quando descobrira nos arquivos de sua ex mulher uma carta endereçada a Vieltchâninov.
Páviel apresenta todos os sintomas de um tipo de personagem comum nos romances de Dostoiévski e mais bem representado no “homem do subsolo”: um eterno sofredor, que, inobstante a sua busca por ser amado, é esmagado pela indiferença dos outros.
O “eterno marido” vive com uma filha pequena chamada Lisa, ensejando de imediato a suspeita de Vieltchâninov de que a menina fosse a sua filha. Páviel, viciado em bebida, vive numa num apartamento em estado deplorável, fazendo com que Vieltchâninov se mobilize para retirar a criança da situação de risco e para levá-la aos cuidados de uma família de confiança.
Lisa aguarda em vão uma visita de Pável que, para todos os efeitos, era quem reconhecia como pai, inobstante os maus tratos. Ao sentir-se abandonada, cai numa enfermidade e falece, causando a fúria de Vieltchâninov que atribuiu a morte à negligência (ou talvez o dolo) do “eterno marido.”.
A relação entre o marido traído e o amante segue de uma forma parecida com a dos personagens do romance “O Duplo”, em que conselheiro Golyádkin é acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, uma espécie de uma réplica sua que lhe vai transtornando a vida.
Ao longo da narrativa, o “eterno marido” vai causando no seu rival sentimentos que vão do mais puro ódio a mais desinteressada compaixão. Como no romance “O Duplo”, há uma relação persecutória entre ambos, cada qual despertando no outro todos os sentimentos relacionados ao ato originário da traição. Tal qual no romance “O Duplo”, pode-se dizer que o “eterno marido” constitui uma espécie de desdobramento do próprio amante infiel, tendo como eixo que os unifica o relacionamento amoroso com a falecida Natália Vassílienva. Páviel é uma sobra de um passado que atormenta Vieltchâninov, aparecendo como uma lembrança permanente da deslealdade e egoísmo do amante que ensejou a tragédia familiar do eterno marido. É a corporificação de sentimentos que estão no inconsciente de Vieltchâninov. O “eterno marido” é, nesse sentido, senão uma parte do amante infiel, ao menos um fantasma que o acompanha.
O “eterno marido” pode ser definido como aquele que é incapaz de viver fora da condição marital. Na sua incessante busca em ser amado, revela e expõe publicamente as suas fraquezas, torna-se ridículo e é constantemente humilhado. E, nos momentos em que constata não ser correspondido na sua busca amorosa, torna-se sádico.
A novela é a forma mais bem sucedida que conheço na literatura universal de descrição da psicologia daqueles envolvidos na infidelidade conjugal,