A torcida organizada que aplaudiu a agressão feita pelo apresentador de noticiário policial José Luiz Datena, candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo, contra seu oponente, Pablo Marçal, do PRTB, ficou indignada com um segundo episódio de violência em debate eleitoral. Desta vez, no apagar das luzes de um bem-comportado e modorrento encontro de prefeituráveis, conduzido por Carlos Tramontina no Flow, um assessor de Marçal agrediu um assessor de Ricardo Nunes sabe-se lá por quê. Entre mortos e feridos, a bofetada rendeu ao assessor de Nunes cinco ou seis pontos no supercílio.
Como a agressão partiu do lado oposto, o STF entrou em cena. A ministra Cármen Lúcia determinou que a Polícia Federal, o Ministério Público e os tribunais regionais eleitorais priorizem a investigação e o julgamento de processos movidos durante a campanha eleitoral. Entre a “turma do amor”, disseminou-se a tese de que a cadeirada de Datena era um caso de legítima defesa (sim, surgiu essa “tese”), portanto ele estaria automaticamente absolvido no júri popular da esquerda cor-de-rosa e de seus amigos “coxinhas”. Ato contínuo, Marçal deveria ter a candidatura impugnada ou, de preferência, cassada.
Diante do novo fato, que não envolveu os candidatos, mas seus assessores, novamente surge o “entendimento” de que Marçal deve ser cassado ou, no mínimo, banido dos debates. Argumenta-se que, segundo as regras das emissoras, que costumam convocar apenas os candidatos de partidos que tenham, no mínimo, cinco parlamentares eleitos, não se justificaria a presença de Marçal, ainda que ele tenha seus 20% de preferência no eleitorado.
Se os jornalistas da esquerda pequeno-burguesa e os da imprensa mainstream buscavam algum meio de expulsar o “bolsonarista” da disputa, parece que a contenda entre os assessores produziu o argumento necessário. Desta vez, a tese da legítima defesa não se aplica ao agressor, embora, ao que tudo indica, a agressão tenha sido uma resposta a uma provocação verbal, exatamente como se deu no caso de Datena, o que, diga-se, parece não vir ao caso.
A ministra Cármen Lúcia redigiu um texto pomposo, que leu durante abertura da sessão da noite da última terça-feira. Segundo ela, que bem poderia parecer uma diretora de colégio passando uma carraspana nos alunos da “turma do fundão”:
“Há que se exigir, em nome do eleitorado brasileiro, que candidatos e seus auxiliares de campanha deem-se ao respeito. E se não se respeitam, respeitem a cidadania brasileira, que ela não está à mercê de cenas e práticas que envergonham e ofendem a civilidade democrática […] Não podem [partidos] pactuar com desatinos e cóleras expostas em cenas de vilania e desrespeito aos princípios básicos da convivência democrática. […] E há que conclamar também os partidos políticos a que tomem tenência”. […]
“Por despreparo, descaso ou tática ilegítima e desqualificada de campanha atenta-se contra cidadãs e cidadãos, atacam-se pessoas e instituições e, na mais subalterna e incivil descompostura, impõe-se às pessoas honradas do país, que querem entender as propostas que os candidatos têm para a sua cidade sejam elas obrigadas a assistir cenas abjetas e criminosas, que rebaixam a política a cenas de pugilato, desrazão e notícias de crimes”.
A “civilidade democrática”, que comemorou a cadeirada de Datena, não pode pactuar com desatinos etc. O problema desse palavrório é que, cada vez mais, ele expõe a hipocrisia dominante nas instituições. Marçal não é uma boa opção para a prefeitura da cidade, mas o problema dele, para essa burguesia indignada, não é esse. O problema é que ele desmascara os demais candidatos e, dessa forma, subverte todo o processo, que aparece como um simulacro de democracia.
O mais provável, no entanto, é que Marçal continue nos debates. “É a audiência, estúpido”, poderíamos dizer, parafraseando o estrategista de Bill Clinton na campanha presidencial de 1992. Uma jornalista do Portal 247, ao comentar que não tinha visto a cena da briga entre os assessores, justificou-se dizendo que, como o debate estava “chato”, ela mudou de canal antes do fim. Faz sentido. Quando ninguém subverte as mil e uma regras de “civilidade democrática”, a coisa fica chata mesmo. Agora, aguardemos o veredicto dos tribunais que regulam a eleição. As redes sociais de Marçal continuam canceladas.
A mesma ministra Cármen Lúcia, curiosamente, diante de queixa de calúnia apresentada em 2022 pelo então governador do Maranhão, Flávio Dino, hoje ministro do STF, contra o então senador Roberto Rocha, proferiu a seguinte decisão:
“Mesmo tendo havido o emprego de expressões duras, faz parte da atuação do parlamentar o direito a críticas ácidas, ríspidas ou contundentes. Frise-se, ainda, que o querelante [Dino] mesmo também é homem público e, nessa condição, sujeita-se à crítica política de maior amplitude”.
Entre interposição de recurso e novas tramitações, Flavio Dino passa a integrar a Corte. O ministro Alexandre de Moraes, agora colega do querelante, divergiu da decisão da ministra e disse entender que a imunidade parlamentar não se aplica sobre as declarações de Roberto Rocha contra Flávio Dino. O então parlamentar atribuíra a Dino influência sobre o procurador-geral de Justiça do Maranhão para coagir prefeitos do estado a apoiá-lo eleitoralmente.
Ao justificar seu “entendimento”, Moraes alegou que as falas não foram feitas somente na sessão do Senado. Roberto Rocha teria dito as mesmas coisas em entrevista a um portal, divulgada em uma página do YouTube. Salvo engano, a inviolabilidade do parlamentar abrange os atos praticados no exercício do mandato sem restrição a local. O art. 53 da Constituição, que trata do tema, não especifica que a inviolabilidade seja circusnscrita ao que se diz em plenário.
Considerando que qualquer coisa que se diga em plenário pode repercutir na imprensa e nas redes sociais, qual seria o proveito de condenar o senador por falar diretamente na imprensa? O único efeito que se vislumbra de tal “entendimento” parece ser promover a autocensura entre os parlamentares.
Segundo decisão de Alexandre de Moraes:
“O Senador extrapolou da sua imunidade parlamentar para proferir declarações em descompasso com os princípios consagrados na Constituição Federal, cuja ilicitude deverá ser devidamente apreciada por esta Suprema Corte”.
Dessa vez, o voto de Cármen Lúcia foi vencido e Roberto Rocha será processado pelo STF pelas falas sobre o agora ministro da Corte Flávio Dino.
A população, de modo geral, não vai checar na Constituição e nos demais códigos legais o embasamento de uma decisão judicial, mas isso não significa que não tenha uma percepção, ainda que difusa, da instabilidade das decisões institucionais, cada vez mais apoiadas em entendimentos subjetivos. Talvez isso ajude a explicar o sucesso que têm feito a pancadaria e a “desrazão” nos debates eleitorais.