Os dois maiores programas sociais brasileiros, o BPC e o Bolsa Família, juntos atendem mais de 25 milhões de pessoas e custam à União, respectivamente, R$100 bilhões e R$168 bilhões. Enquanto esses programas, o salário mínimo e o abono salarial estão sendo sacrificados no pacote anunciado pelo Ministério da Fazenda, sob a alegação de necessidade de ajuste das contas públicas, outros números merecem comparação. Isso sem mencionar a contestação que se pode fazer à própria ideia de regra fiscal, teto de gastos e ao Novo Arcabouço Econômico.
Em 2023, o governo concedeu R$534,4 bilhões em isenções e subsídios a setores econômicos, excluindo dessa conta as pequenas empresas. Apenas de janeiro a agosto de 2024, foram R$ 10,4 bilhões em isenções para agrotóxicos.
Grandes empresas, por sua vez, distribuíram R$ 615 bilhões a acionistas, de forma totalmente isenta de impostos, enquanto os trabalhadores pagam até 27,5% de imposto sobre seus salários. Além disso, aproximadamente R$ 40 bilhões são pagos anualmente aos detentores de títulos da dívida pública a cada ponto percentual de aumento da taxa Selic. Essa decisão é tomada unilateralmente pelo COPOM (Conselho de Política Monetária), em um processo a portas fechadas, sem qualquer eleição ou consulta pública.
O pacote anunciado não apenas promove um “pente fino” no BPC e no Bolsa Família, tratando trabalhadores extremamente empobrecidos e precarizados como suspeitos, mas também altera prejudicialmente os critérios desses programas, além do abono salarial e da valorização do salário mínimo. A valorização do salário mínimo, por exemplo, está condicionada às regras do arcabouço fiscal, que limitam o aumento real acima da inflação a, no máximo, 2,5% ao ano. Caso essa regra estivesse em vigor desde 2003, o salário mínimo atual seria 25% menor, abaixo de R$ 1.000. Essa limitação afeta todos os benefícios sociais vinculados ao mínimo, atingindo milhões de pessoas.
No caso do abono salarial, o governo argumenta que trabalhadores formais que recebem até dois salários mínimos estariam sendo privilegiados ao ter direito a um pagamento anual equivalente a um salário mínimo. Isso porque sua renda corresponde a 85% da média salarial dos trabalhadores brasileiros, e 60% dos trabalhadores formais têm direito a esse benefício. Em vez de reconhecer que o salário médio da população é extremamente baixo, o governo trata os beneficiários do abono como o problema a ser corrigido.
Conforme os dados divulgados, o governo planeja economizar R$ 44,3 bilhões em dois anos por meio da desvinculação de recursos sociais (DRU), da redução de repasses federais ao Fundeb (transferindo a responsabilidade para estados e municípios), da limitação do aumento do salário mínimo, e de cortes no abono salarial, no BPC e no Bolsa Família. Essas economias equivalem ao impacto fiscal de um aumento de apenas um ponto percentual na taxa Selic.
As regras fiscais, que promovem a precarização da classe trabalhadora em benefício do capital, são alvo de críticas de economistas heterodoxos, sobretudo aqueles ligados à Teoria da Moeda Moderna. Entretanto, o foco aqui será nos impactos dessas medidas sobre as mulheres, especialmente com as mudanças no BPC.
O “pente fino”, que já ocorreu no Bolsa Família durante o governo Temer, sem a busca ativa realizada por assistentes sociais para localizar beneficiários irregulares, tende a prejudicar os mais vulneráveis. Isso inclui pessoas analfabetas, sem acesso à internet, desinformadas, com problemas de locomoção ou deficiências intelectuais, pessoas internadas e aquelas que vivem em áreas rurais, indígenas e ribeirinhas.
Em relação ao BPC, a proposta atual reverte avanços conquistados em 2021, durante o governo Bolsonaro, que desconsideravam outros programas sociais no cálculo de renda. Agora, esses benefícios voltam a ser contabilizados, e a renda de cônjuges que residem em outra casa também será incluída. A renda de filhos e enteados que vivem na mesma casa também será considerada, complicando ainda mais o acesso ao benefício.
Uma mulher, por exemplo, que tenha escapado de violência doméstica e conseguido se separar fisicamente do agressor, mas que, legalmente, ainda seja considerada cônjuge. A renda dele, mesmo que superior à dela, será incluída no cálculo, impossibilitando o acesso ao benefício.
Além disso, as mulheres, mais sujeitas à informalidade, enfrentam maiores dificuldades para contribuir com a previdência. Para muitas, o BPC é a única alternativa de aposentadoria em situações de baixa renda, após uma vida de trabalho informal e múltiplas jornadas. Agora, mesmo esse benefício está sendo dificultado.
Por fim, as mulheres continuam sobrecarregadas como principais cuidadoras da sociedade, de crianças, idosos e pessoas com deficiência. Nos casos de crianças com deficiências graves ou doenças raras, até 95% dos pais abandonam a família, segundo algumas pesquisas. Nessas situações, o BPC, já insuficiente, revela seu caráter anti-popular, pois avalia apenas a renda da pessoa com deficiência, ignorando que, muitas vezes, outra pessoa – geralmente uma mulher – precisa abandonar o emprego para oferecer cuidados.
Assim, além de perpetuar a pobreza, essas medidas ampliam as desigualdades, atingindo especialmente mulheres, crianças e pessoas com deficiência, contradizendo os ideais de um governo de esquerda.