O jornalista Jeferson Miola publicou um artigo no portal Brasil 247 afirmando existirem muitas dúvidas sobre o resultado eleitoral negativo da esquerda nas eleições municipais. Tal resultado seria estranho “face os indicadores positivos da economia com Lula”. “Afinal”, escreve o jornalista, “o crescimento do PIB supera previsões, o desemprego encontra-se num dos níveis mais baixos das últimas décadas, o salário mínimo está sendo valorizado e aumentaram os orçamentos das famílias de baixa renda — seja pela criação de novas oportunidades de trabalho, seja devido aos programas sociais e previdenciários”.
“Apesar da situação econômica do país, isso não se traduziu, contudo, em ampliação ou confirmação do potencial do ‘voto lulista’ para a esquerda nos municípios”, ressaltou. “Na realidade, o eleitorado que deu a vitória a Lula em 2022 em inúmeras cidades de médio e grande porte nesta eleição se pulverizou, e se distribuiu também entre candidatos de direita e extrema-direita”, continuou.
Miola ainda constatou que “além do alerta das urnas, pesquisas de opinião mostram a persistente dificuldade do governo em conseguir melhorar seus índices de aprovação e reduzir sua reprovação, em que pese tudo o que vem sendo feito desde 1º de janeiro de 2023”.
Segundo ele, “fosse na época dos seus dois primeiros governos, a aprovação de Lula estaria em níveis muito superiores em consequência deste esforço monumental que realiza para reconstruir o país devastado por seis anos pós-golpe com Temer e, depois, com Bolsonaro e os militares”.
Miola, assim, demonstra a total confusão que permeia os analistas da esquerda, principalmente do PT. Segundo eles, o desempenho ruim do governo Lula não seria algo normal. Afinal, a economia estaria melhorando e Lula estaria fazendo um “esforço monumental” para “reconstruir o país devastado” após o golpe de 2016, com Michel Temer e Jair Bolsonaro.
As afirmações de Miola, porém, revelam a total falta de sintonia entre a esquerda pequeno-burguesa e os anseios dos trabalhadores. Não apenas isso, como também revelam a completa bolha que envolve os intelectuais petistas, que tapam o sol com uma peneira, tentando fingir que tudo está ocorrendo bem.
Quando afirma, por exemplo, que “o crescimento do PIB supera previsões”, Miola esquece que o povo não se alimenta de PIB. Aliás, o crescimento do PIB não necessariamente significa que a população vai se beneficiar disso. Na época mais autoritária da ditadura militar brasileira, durante o governo Médici, o PIB brasileiro chegou a crescer 14% ao ano. Isso, no entanto, foi realizado às custas de um gigantesco arrocho salarial contra os trabalhadores — e, em grande medida, foi um crescimento artificial, que colocou o País sob a ditadura financeira do imperialismo.
Miola, então, diz que “o salário mínimo está sendo valorizado” e que “o desemprego encontra-se num dos níveis mais baixos das últimas décadas”. Sobre a questão salarial, é importante destacar que, sim, desde o golpe de Estado, pela primeira vez, o Brasil começou a ter uma valorização real (acima da inflação) do salário mínimo. No entanto, o aumento é muito pouco significativo para acabar com a situação de miséria na qual vive a totalidade do povo brasileiro.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o salário mínimo, atualmente em R$1.412,00, deveria ser, em outubro desse ano, de R$6.769,87, para que fosse garantido tudo o que está estabelecido na Constituição de 1988 — alimentação, moradia, lazer, vestimentas etc.
Quer dizer, a melhoria salarial promovida por Lula ainda é muito insuficiente para garantir uma condição melhor para os brasileiros. O tal salário mínimo ideal é uma coisa distante, inclusive, para uma parcela da classe média, que também é pobre.
Na questão do desemprego, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa encerrou o terceiro trimestre em 6,4%, no menor nível desde o final de 2013. Esse número, no entanto, é subvalorizado. Primeiro, não considera as pessoas que vivem em trabalhos informais — isto é, pessoas que vivem de bicos e, portanto, estão efetivamente desempregadas. Segundo, é reduzido pela criação da categoria dos “desalentados” — pessoas que desistiram de procurar emprego —, que também são desempregados. De acordo com o IBGE, são mais de três milhões de desalentados — somando-os com os 7,5 milhões de desempregados, chegamos a um total de 16,4% de desempregados reais.
Não bastando isso, desde o golpe de Estado, entre os “empregados”, o número de pessoas que trabalham informalmente — e, portanto, trabalham e em piores condições do que no passado — aumentou consideravelmente. Da mesma forma que a inflação diminuiu sob o governo Lula, os produtos continuam caros para os miseráveis salários que são pagos no País.
Esse é o cenário que vemos no Brasil verdadeiro, e não no Brasil das planilhas de Fernando Haddad, “analisado” por Miola.
Lula foi eleito para melhoras as condições de vida dos trabalhadores. Por isso, houve uma intensa mobilização popular para elegê-lo. Se ele tem perdido apoio, é justamente por não conseguir fazer isso. Não só Lula erra ao deixar Haddad adotar medidas neoliberais de taxação dos pobres e de cortes orçamentários, como erra ao insistir na política de acordos institucionais, achando que, assim, conseguirá dar algumas migalhas à população. No máximo, o que conseguiu até agora é estabilizar a situação que foi de mal a pior com Temer e Bolsonaro. Mas isso não é suficiente, o povo anseia por mudança, e é isso que explica a polarização no País.
Miola, no entanto, faz um caminho inverso, destacando que o “equilíbrio renhido entre as percepções positivas e negativas acerca do governo e do próprio Lula” se dá “em grande medida devido à polarização ideológica”. Quer dizer, não a crise capitalista, a situação concreta, que leva à polarização ideológica. Para o intelectual petista, a “polarização ideológica” seria responsável por uma parcela da população não ver que a situação estaria indo perfeitamente bem!
Miola reforça essa visão ao citar o cientista político e professor da UFRJ Josué Medeiros sobre as eleições norte-americanas: “embora o governo de Joe Biden tenha bons números para apresentar – especialmente na redução do desemprego e no aumento da renda – as pessoas não sentem essa melhora. Em parte, por conta da inflação. Em parte, por conta da polarização política, que afeta profundamente as percepções e os comportamentos políticos, especialmente entre os republicanos”.
Segundo a afirmação, a polarização política não seria consequência de nada concreto, mas algo que está acontecendo e que afeta “as percepções”. Na verdade, Biden tentou maquiar um pouco a situação econômica, não resolvendo nada de concreto. Para piorar, fez a inflação do país subir expressivamente para financiar nazistas na Ucrânia e promover um genocídio na Palestina por meio de “Israel”.
Mas como a ideia não se sustenta, Josué tem que, em seguida, afirmar o óbvio. Diz ele, citado por Miola: “a principal razão é que a vida da população não melhora dentro da dinâmica neoliberal que organiza a democracia estadunidense. A privatização dos direitos e a destruição dos laços de solidariedade promovem um cansaço e uma frustração que as estatísticas não conseguem alterar”.
“O trabalhador pode até estar empregado, mas vive um contexto de superexploração no trabalho, com jornadas extenuantes, péssima qualidade de vida e uma competição feroz com seus pares, estimulada pelos superiores. Sua renda de fato aumentou, mas seus gastos com saúde dispararam, ou então precisei recorrer a serviços de saúde de pior qualidade porque é o que meu orçamento permite. Tudo isso gera estresse, depressão, angústia, raiva. E só quem se fortalece com esses sentimentos é a extrema-direita.”
Fazendo a relação com o Brasil, Miola diz que “aqui no Brasil, mesmo a situação econômica positiva não consegue aplacar este mal-estar da população, em sua maioria pobre, e que leva uma vida ‘invivível’ devido às condições impostas pelo neoliberalismo, que concentra renda nas mãos de rentistas e penaliza a imensa maioria trabalhadora com baixos salários e carestia de serviços públicos privatizados e mercantilizados”.
Ora, é uma afirmação extremamente contraditória: como pode haver uma “situação econômica positiva” se a maioria da população leva “uma vida ‘invivível’ devido às condições impostas pelo neoliberalismo, que concentra renda nas mãos de rentistas e penaliza a imensa maioria trabalhadora com baixos salários e carestia de serviços públicos privatizados e mercantilizados”?
Sem responder tal pergunta, ele continua citando dados concretos:
“Os dados falam por si. Mais de 70% da população ganha até três salários mínimos por mês, valor evidentemente insuficiente para cobrir os gastos com transporte, água, energia elétrica, gasolina, remédios, saúde, educação, alimentação, moradia. E, além disso, parcelas significativas vivem endividadas e pagando taxas obscenas de cartão de crédito.
Quase um terço da população [31,6%, ou 70 milhões de pessoas] vive na pobreza, dos quais 5,9% [12,5 milhões] encontram-se na pobreza extrema.”
“O IBGE apurou que em 2023 27,6% dos lares brasileiros viviam com algum grau de insegurança alimentar, 4,1% deles padecendo de insegurança alimentar grave, que corresponde à escassez de alimentos.”
“O país tem 16,4 milhões de pessoas morando em favelas e áreas sem infra-estrutura e equipamentos sociais – 8,1% da população -, afora outras dezenas de milhões vivendo em condições muito precárias.”
E conclui que “a estafa e a rebeldia das maiorias sociais com essa condição penosa de vida assumem a forma de uma revolta silenciosa que se manifesta nas urnas e penaliza as ‘forças do sistema’. É preciso decifrar este enigma”.
Aqui somos obrigados a perguntar: qual “enigma”? A situação não está clara o suficiente? Enquanto a esquerda insistir em se manter ao lado das “forças do sistema”, isto é, do neoliberalismo e da política imperialista, ela só irá afundar. A conclusão óbvia, ululante, à qual Miola deveria chegar é que, se a esquerda quer sair do fundo do poço, é preciso romper com a política neoliberal e capitalizar a crise do imperialismo.