O colunista do portal de esquerda Brasil 247 Miguel Paiva publicou no último dia 11 um artigo intitulado Socialismo de gênero, fazendo uma defesa do identitarismo. Defendendo a curiosa tese de que “o verdadeiro socialismo vai ser quando todos os gêneros tiverem os mesmos direitos”, o jornalista e chargista ignora completamente as origens e mesmo a aplicação real do identitarismo contra a esquerda, para dizer:
“Na minha humilde opinião acho que não devemos abandonar a pauta identitária de jeito nenhum. Mesmo que percamos espaço no equilíbrio político é importante manter a chama acesa. Afinal, essas conquistas foram feitas em períodos não necessariamente progressistas. Foram conquistas que a sociedade sentiu que era hora.”
Paiva está profundamente equivocado ao enxergar o identitarismo como uma conquista social. Longe disso, o identitarismo é uma criação meticulosa do imperialismo, forjada nos centros universitários mais importantes dos Estados Unidos com o propósito de controlar e dividir a esquerda revolucionária. A tática, testada e aprimorada nas décadas de 1960 e 1970, foi aplicada inicialmente contra o Partido Panteras Negras, que, por lutar pelos interesses reais da classe trabalhadora negra, tornava-se um grave problema ao imperialismo norte-americano. Através da introdução de questões identitárias, o imperialismo conseguiu se infiltrar e fragmentar o movimento, desviando o foco da luta para questões como supostos comportamentos machistas de alguns membros, o que resultou na implosão de um dos partidos mais combativos da época e no país imperialista mais desenvolvido do mundo.
A ideologia identitária, ao contrário do que Paiva afirma, não representa uma “chama acesa” de conquistas progressistas, mas um cavalo de Troia. Criada nas universidades mais alinhadas ao imperialismo, carrega desde seu nascimento um vício profundo de origem. E sua função real se revelou ao longo dos anos: sem fortalecer os direitos das minorias, o identitarismo age como um fator de divisão nas fileiras da esquerda, impedindo a unificação dos trabalhadores.
Essa confusão não serve para promover maior inclusão, mas, sim, para gerar divisões entre o povo trabalhador, criando um terreno fértil para a extrema direita, que usa o repúdio popular em relação ao identitarismo para canalizar ressentimento em direção oposta aos interesses da classe. Paiva, no entanto, continua:
“O mundo passa por uma transformação muito forte estimulada pelas big techs que visa acabar com qualquer iniciativa, ou ideologia coletiva. O que vale é a meritocracia, o esforço individual, o talento de cada um e deus por cima de tudo fazendo o seu papel. Isso é o que eles acreditam. A política foi demonizada, a sociedade isolada e as iniciativas identitárias jogadas para escanteio, vítimas do conservadorismo reacionário.”
O que Paiva parece não perceber é que o fenômeno que descreve é, na verdade, sintoma de um momento altamente reacionário, marcado pela ofensiva da direita contra qualquer ideologia coletiva genuína. O identitarismo, longe de ser “vítima” do conservadorismo, é uma ferramenta chave da ofensiva do imperialismo e tem sido promovido exatamente pelos órgãos mais reacionários da ditadura mundial, incluindo a Rede Globo, que apoia e impulsiona amplamente as reivindicações identitárias.
Para qualquer observador atento, o apoio da Globo deveria servir como alerta de que o identitarismo é parte da máquina de propaganda imperialista, usado para enfraquecer a luta dos trabalhadores, não para “empoderá-los”. Ao dizer que as iniciativas identitárias foram “jogadas para escanteio”, Paiva demonstra uma visão superficial e politicamente ingênua.
Essas reivindicações, longe de serem marginalizadas, são promovidas justamente porque servem aos interesses dos setores mais poderosos da burguesia mundial, alimentando divisões internas na classe trabalhadora e desviando a atenção das questões estruturais. O apoio incondicional da Globo às pautas identitárias evidencia que o identitarismo não representa uma luta progressista, mas sim um dos recursos usados para distrair a classe trabalhadora, neutralizando a resistência de suas fileiras e fragmentando a esquerda em facções menores e impotentes, exatamente o que o imperialismo busca ao promover essa ideologia.
“Os entendidos dizem que Trump venceu porque os democratas abandonaram as questões econômicas para se dedicar às questões identitárias. Como se o mundo fosse só economia. As pessoas vivem, são segregadas, sofrem bulling, violência de gênero e racismo, entre outras coisas, mesmo a economia indo bem.”
Paiva se equivoca ao insinuar que a economia “vai bem” e que as reivindicações identitárias seriam alheias às questões econômicas. Basta perguntar: quando a economia esteve realmente bem desde os anos 1970? Para a pequena burguesia, houve uma sensação de melhoria entre os anos 1990 e 2008, mas esse foi apenas um breve momento dentro de uma longa era de estagnação e crises. Desde 2008, a economia global oscila entre estagnação e depressão, atingindo de forma cada vez mais intensa o padrão de vida das massas e invalidando qualquer noção de prosperidade que Paiva sugere.
A afirmação de que “as pessoas vivem, são segregadas, sofrem bulling, violência de gênero e racismo, mesmo a economia indo bem” revela, na verdade, uma análise desconectada da realidade material. A violência social não é fruto de outra coisa, mas da própria crise econômica, que torna a luta por posições e recursos mais brutal, o que termina tendo implicações diretas na própria experiência da vida em sociedade.
A economia mundial, marcada por uma crise profunda que só se agrava, é um fator determinante para a vida cotidiana, inclusive para a amplificação dos problemas sociais que ele menciona. Desviar-se das questões econômicas para dar centralidade às reivindicações identitárias não traz respostas reais para a classe trabalhadora, mas sim uma distração que ignora a raiz da exploração e do fundamento essencial da opressão, sempre vinculada ao sistema econômico e ao aprofundamento da crise.
As colocações de Paiva expressam bem o pensamento da esquerda pequeno-burguesa, que, por sua condição social relativamente confortável, ignora a pressão insustentável que as condições econômicas exercem sobre a classe trabalhadora, especialmente desde a crise de 2008 e, de forma ainda mais grave, após a pandemia de 2020 e 2021. A visão de que o identitarismo representa uma “conquista” reflete o distanciamento dessa esquerda das verdadeiras necessidades populares. Para o trabalhador comum, o agravamento das crises econômicas é a realidade palpável e urgente, enquanto o identitarismo surge como uma política importada, que serve para criar divisões, mascarando o verdadeiro objetivo das lutas e desviando o foco da questão central, que é a luta contra a exploração capitalista.
Ao defendê-la, Paiva endossa a estratégia imperialista de confundir as bases da esquerda e de impedir uma resposta de fundo político às sucessivas crises do sistema mundial. Sua postura legitima uma ideologia que, na prática, tem fortalecido o crescimento do fascismo em escala global, dando-lhe uma aparência de “progressismo”.
Não existe “socialismo de gênero”, exceto na imaginação fértil do autor. O que existe é um programa econômico acabado, dedicado aos interesses progressistas do proletariado, mas que em sua tarefa de superar a decadência do atual regime, enfrenta mecanismos de controle que servem aos piores inimigos dos trabalhadores. Libertando-se dessa interferência, a esquerda poderá finalmente se posicionar como uma verdadeira força de oposição ao sistema decrépito, unindo e mobilizando as massas populares para enfrentar as crises de forma coerente, combativa e superando-as de maneira consequente.