O artigo Os três “Estados paralelos” na crise do Rio Grande do Sul, publicado pelo portal Esquerda Diário, do Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), é um exemplo de como a esquerda pequeno-burguesa, diante de uma situação de crise, perde completamente a cabeça. De acordo com o texto, a catástrofe em curso no Rio Grande do Sul, que resultou na morte de mais de cem pessoas e em uma destruição inestimável, teria revelado que “três grandes vetores” estariam disputando “a hegemonia do processo e da narrativa da crise”.
A tese do MRT já chama a atenção logo de início pela falta de um vocabulário marxista – isto é, rigorosamente científico. A que exatamente o grupo se refere quando fala em “três vetores”? São forças políticas? São forças sociais? Se sim, por que não chamá-las assim? E o que significaria “disputar” a “narrativa da crise”? Onde entram as classes sociais na análise do MRT? Onde entra o Estado? Onde entram as relações de produção?
Estamos diante, portanto, não de uma análise marxista, mas de uma verdadeira macumba ideológica do grupo que se autodeclara “trotskista”. De uma discussão que é abstrata, vazia. Que se baseia em especulações que não têm uma base na realidade. Esse, no entanto, é apenas o início do artigo.
O MRT prossegue, então, e saca do bolso pela primeira vez um conceito que integra a doutrina marxista: o Estado. No entanto, o grupo deturpa por completo o seu significado. Diz o artigo, ao continuar sua análise sobre os “três vetores”:
“Um deles é representado pelo Estado e suas instituições tradicionais, os governos, o Exército, a Brigada, os bombeiros, a Defesa Civil, o judiciário, o legislativo, etc. O segundo não existe propriamente como Estado ainda, mas vem sendo fabricado em base a um discurso notadamente populista, de extrema-direita, voluntarista, radicalmente ‘anti-Estado’, financiado por setores como Pablo Marçal, Luciano Hang, igrejas evangélicas e representado por figuras como Nego Di, Delegado Zucco, bandos de justiceiros, negacionistas climáticos e outros influencers e políticos. O terceiro emerge debaixo, dos abrigos auto-organizados, dos sindicatos, dos quilombos e ocupações, das pesquisas de estudantes de universidades, de tantos trabalhadores e trabalhadoras que se desdobram para ajudar em triagens, produção de alimentos, doações, resgates, divisões de tarefas das mais variadas. Os dois primeiros constituem parte integral do Estado burguês, apesar dos discursos e dos bandos negacionistas que inclusive se enfrentam com setores do exército e da polícia. O terceiro não existe enquanto Estado, mas persiste em germe na colossal solidariedade coletiva que estamos vendo, na enorme energia depositada por milhares de jovens e trabalhadores das cidades afetadas e também nas ações de auxílio nacionais e internacionais [grifo nosso]”.
O grupo considera, portanto, que, no Rio Grande do Sul, há três Estados! É, inclusive, o que afirma no título, ao fazer referência a três “Estados paralelos”. Seriam eles, grosso modo: o “Estado tradicional”, o “Estado da extrema direita” e o “Estado da solidariedade”. É como se cada uma das classes sociais tivesse o seu próprio Estado – a burguesia, o “Estado tradicional”, e o proletariado, o “Estado da solidariedade”. E como se a extrema direita, que o MRT não consegue classificar do ponto de vista das classes sociais, teria também o seu Estado. É realmente inacreditável que um grupo tenha chegado ao ponto de formular tal loucura. Afinal, bastaria ler, literalmente, a primeira página da obra Estado e Revolução, de Vladimir Lênin, para se dar conta de que os “Estados” inventados pelo MRT – “Estado da extrema direita” e “Estado da solidariedade” – não se enquadram no conceito de “Estado” da doutrina marxista. Com a palavra, Lênin:
“O Estado – diz Engels, fazendo o balanço da sua análise histórica – não é, portanto, de modo nenhum, um poder imposto de fora à sociedade; tão-pouco é “a realidade da ideia moral”, “a imagem e a realidade da razão”, como Hegel afirma. É, isso sim, um produto da sociedade em determinada etapa de desenvolvimento; é a admissão de que esta sociedade se envolveu numa contradição insolúvel consigo mesma, se cindiu em contrários inconciliáveis que ela é impotente para banir. Mas para que estes contrários, classes com interesses econômicos em conflito, não se devorem e à sociedade numa luta infrutífera, tornou-se necessário um poder, que aparentemente está acima da sociedade, que abafe o conflito e o mantenha dentro dos limites da “ordem”; e este poder, nascido da sociedade mas que se coloca acima dela, e que cada vez mais se aliena dela, é o Estado”.
A ideia de um “Estado do proletariado” e de um “Estado da extrema direita” convivendo dentro da sociedade capitalista é, portanto, ridícula. Quando se diz que o Estado é burguês, isso significa tão somente que é a burguesia quem o controla. Ele, no entanto, é o produto da própria luta de classes. Não existe Estado burguês sem o proletariado. Ele é, conforme explica Lênin, “o produto e a manifestação do carácter inconciliável das contradições” entre os capitalistas e os trabalhadores.
Poderíamos dar uma colher de chá aos redatores do Esquerda Diário e considerar simplesmente que eles confundiram alguns termos. Que o sentido de sua análise está correto. Mas isso não seria verdadeiro. A escolha do termo “Estado” leva, inevitavelmente, a outra sequência de conclusões muito absurdas.
O MRT afirma: “o Estado tradicional vem se mostrando absolutamente incapaz de lidar com a crise”. Com essa frase, podemos concordar. No entanto, um marxista diria: se o Estado é incapaz de lidar com a crise, é preciso organizar uma luta para derrubá-lo. Afinal, Lênin nos ensinou que, segundo Marx, “o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de opressão de uma classe por outra, é a criação da ‘ordem’ que legaliza e consolida esta opressão moderando o conflito de classes”. Portanto, a tarefa do marxista seria tomar o poder político, destruir o Estado burguês e, assim, estabelecer um Estado operário, que consistisse na dominação dos capitalistas pelos trabalhadores.
Contudo, quando o MRT considera que há outros “Estados”, a solução que está colocada não é a mesma. Se o Estado tradicional é um Estado incapaz, a solução seria deixá-lo de lado e construir um outro Estado. O MRT propõe, portanto, a criação de um Estado supostamente operário, sem que isso passe pela destruição do Estado burguês. Essa ideia aparece claramente em outros momentos do artigo:
“É impressionante como as pessoas estão sendo tocadas pela tragédia no RS e estão se desdobrando para salvar vidas, para ajudar em resgates, para alimentar o próximo, para ajudar na limpeza de um abrigo, para resgatar animais abandonados, para doar o pouco que tem em benefício dos refugiados. (…) Essa impressionante força de baixo, em grande medida auto-organizada, é o principal ponto de apoio para reconstruir as vidas que estão desestruturadas nesse momento e, na medida do possível, as cidades devastadas. (…) Para esse potencial se desenvolver plenamente, seria necessário que houvesse uma coordenação de todas essas iniciativas de abrigos e brigadas solidárias de forma independente do Estado, auto-organizada. Um comando geral das cidades poderia ser conformado, com representantes eleitos de cada abrigo, cada centro solidário, cada assembleia de bairro e cada brigada de resgate para coordenar as iniciativas de acordo com as demandas de mantimentos, salvamento e trabalho. Grandes supermercados deveriam ser expropriados nesse momento e controlados pelos trabalhadores para suprir a população de acordo com a demanda – é um crime que Zaffari, Carrefour e Cia. sigam lucrando milhões enquanto o povo gaúcho morre, adoece e perde suas casas”.
Não há dúvidas de que a calamidade no Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que expôs até onde os bancos estão dispostos a irem para aumentar os seus livros, também expôs a inesgotável capacidade de solidariedade dos oprimidos. Nem que toda forma de solidariedade em momentos como esse devam ser incentivadas. O problema, no entanto, é que, ao ter como programa simplesmente fortalecer a rede de solidariedade que se formou, o MRT deixa de lado a luta pelo poder político. Deixa de lado a conclusão fundamental dos marxistas acerca do Estado: a de que é preciso tomar o poder político, em uma luta que é, necessariamente, uma luta contra o Estado capitalista.
O mais próximo disso que o MRT chega a falar é que “ao mesmo tempo, os sindicatos, as centrais sindicais e movimentos sociais deveriam colocar seu peso para posicionar a classe trabalhadora organizada em cena, disputar a hegemonia do processo e da crise com uma delimitação de classe, para fazer com que os capitalistas sejam os que paguem pela crise, não a maioria da população”. O que seria disputar a “hegemonia do processo”? E de que processo exatamente estamos falando? Para os trabalhadores, não se trata de “disputar” com a burguesia para determinar quem terá a “hegemonia” na solidariedade ao povo gaúcho, se é disso que o MRT está falando. A questão é muito mais concreta: a tarefa dos trabalhadores é se organizarem para lutar contra os capitalistas, de tal modo que a solidariedade já é, em si, parte de um processo necessário para essa organização. Afinal, quanto melhores as condições de vida do proletariado, em melhores condições estão para a luta. A solidariedade, assim, se torna não um fim em si mesmo, mas parte de um objetivo maior.
Para além da solidariedade, portanto, seria preciso exigir uma série de reivindicações emergenciais junto ao Estado. Reivindicações essas que, se vitoriosas, fortalecem a classe operária em sua luta contra os capitalistas, e que, enquanto não forem vitoriosas, fornecem um sentido para a organização proletária. Seria preciso, portanto, medidas imediatas, como reivindicar tarifa zero para água, energia e telefone nas áreas afetadas até normalizar a situação e um auxílio emergencial a todos os necessitados. Reivindicações como essas, além de serem populares e facilmente compreensíveis, ajudam a classe operária a tomar consciência, na luta, de como o Estado serve aos seus inimigos. Em um nível mais elevado, seria preciso reivindicar a suspensão dos pagamentos de dívidas interna e da dívida externa, inclusive com o governo federal, a suspensão da lei de responsabilidade fiscal e o fim da política de austeridade. Assim, a situação imediata também serviria para uma compreensão mais profunda do conjunto de medidas que a burguesia adota para dominar a população. Por fim, seria preciso dirigir palavras de ordem que fizessem referência direta ao próprio poder político, como o “Fora Eduardo Leite”.
Conforme o MRT apresenta a situação, a tarefa seria muito mais simples. Uma vez que aconteceu uma catástrofe, bastaria fazer um chamado à “auto-organização” e o fim do Estado capitalista estaria dado. Trata-se, no final das contas, de mais uma demonstração da incapacidade do grupo de ler as primeiras páginas de uma obra dos revolucionários marxistas. No Programa de Transição, Leon Trótski explica que:
“A tarefa estratégica do próximo periodo – período pré-revolucionário de agitação, propaganda e organização – consiste em superar a contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e de sua vanguarda (confusão e desencorajamento da velha geração, falta de experiência da nova). É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”.
O MRT não se preocupa em construir uma ponte para a revolução porque supostamente, as condições subjetivas da revolução já estariam dadas. Não é verdade. A agitação em torno da “auto-organização”, embora soe como uma radicalismo de quem está muito ansioso para a tomada do poder, é, no fim das contas, o pretexto do pequeno burguês para não travar a luta política no dia a dia. O pretexto para não construir um partido revolucionário, para não organizar a classe operária em torno de suas reivindicações, para não formular uma política que permita a evolução da consciência proletária.