Em decisão publicada no dia 2 de julho de 2024, o Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT) arquivou o processo aberto pela Delegacia de Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados contra o militante Ieri Sousa de Braga Júnior, do Partido da Causa Operária (PCO). O processo, sob incumbência do 3º Juizado Especial Criminal de Brasília, acusava Ieri Júnior de apologia de crime ou de criminoso, crime previsto no 287º artigo do Código Penal. No entanto, acabaria sendo descartado por “falta de justa causa”, conforme o parecer do MPDFT.
O fato que motivou a ação da Delegacia de Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados foi a participação de Ieri Júnior de uma sessão no Congresso Nacional, no qual se debatia a causa palestina. Naquela sessão, ocorrida a 24 de abril, Ieri Júnior trajava uma camisa do Movimento de Resistência Islâmica (Hamas, na sigla em árabe), enquanto distribuía panfletos condenando os crimes de guerra perpetrados pelos sionistas na Faixa de Gaza. Como o evento estava sendo transmitido em tempo real pela TV Câmara, as imagens de Ieri Júnior com a camisa do Hamas logo rodaram o País inteiro, ganhando ampla repercussão na imprensa e despertando a fúria dos sionistas.
A participação de Ieri Júnior naquela sessão incomodou profundamente os sionistas porque revelou, de maneira incontestável, o apoio que a resistência palestina tem entre o povo brasileiro. Mostrou que, mesmo diante de toda a propaganda de guerra de “Israel” contra a luta do povo palestino, o apoio à população de Gaza e às suas organizações guerrilheiras não para de crescer. A camisa do Hamas exposta na TV Câmara escancarou que toda a truculência do sionismo não tem sido eficaz em intimidar os apoiadores da causa palestina. Por isso, o processo.
Nem na Constituição Federal, nem no Código Penal, nem em qualquer lei brasileira, está estabelecido que vestir uma camisa do Hamas seja crime. Muito pelo contrário: a Constituição, entre outras coisas, estabelece que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
O argumento da Delegacia de Polícia Legislativa da Câmara dos Deputados, no entanto, foi o de que o Hamas – sabe-se lá por que – seria uma organização “terrorista” e que, portanto, usar uma camisa do Hamas seria o mesmo que fazer apologia ao “terrorismo”. Sendo o terrorismo tipificado pela lei nº 13.260/2016, Ieri estaria, portanto, defendendo, segundo seus acusadores, uma organização criminosa.
Ainda que de fato exista o crime de “terrorismo” no regime jurídico brasileiro, caracterizado atos praticados por razão de “xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião” e “cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”, o fato é que o Hamas não é uma organização terrorista em nenhum sentido do termo. É por isso que o MPDFT, ao arquivar o processo, afirmou que “a mera divulgação acintosa de apoio velado ou explícito a grupo que consta de lista de grupos terroristas como o Hamas não configura o crime, visto que, não há indivíduo identificado e sequer o referido grupo é oficialmente considerado terrorista na República Federativa do Brasil ou cometeu crimes no Brasil”. Isto é, não é porque os Estados Unidos, que promovem golpes de Estado em todo o planeta, dizem que o Hamas é uma organização terrorista que isso deveria ter valor legal no Brasil.
Em declaração exclusiva a este Diário, Ieri Júnior explicou ainda que “se eu tivesse vestindo a camisa de algum dos líderes do Hamas, isso talvez pudesse ser caracterizado como apologia a um criminoso. No entanto, isso é uma camisa genérica”. Ele ainda disse que o processo foi considerado como “atípico, como algo que não deve ser imputado pela lei penal”.
A recomendação do Ministério Público ainda explica o que seria uma apologia:
“Fazer apologia consiste em realizar elogio, louvor, proceder a um enaltecimento. A exaltação sugestiva se refere, no caso, a fato criminoso ou a autor de crime (e.g ., elogiar em programa de televisão o assassinato de alguém, ou glorificar o torturador de um preso).”
A rigor, portanto, nem mesmo de ter feito apologia ao Hamas Ieri Júnior poderia ser acusado. Afinal, ele sequer elogiou o partido, mas apenas vestiu uma camisa da organização islâmica.
Por fim, merece destaque que a própria ideia de tornar crime a apologia de qualquer coisa é um atentado contra a liberdade de expressão. A apologia é simplesmente um discurso, a defesa de algo. No final das contas, é a manifestação de uma opinião. De sorte que, a rigor, se o Congresso Nacional definir que é crime realizar um aborto, os defensores do direito ao aborto deveriam ser considerados criminosos. Se o mesmo Congresso Nacional decidir que é crime entrar em uma praia sem pagar uma taxa, aqueles que se colocassem contra a privatização das praias seriam considerados criminosos. Trata-se de um dispositivo que, no final das contas, anula o propósito maior das liberdades democráticas: proteger os cidadãos do autoritarismo do Estado.