Duas médicas foram suspensas pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) por atenderem vítimas de estupro e realizarem o aborto, procedimento amparado pelas leis vigentes no País. A perseguição contra os profissionais de saúde por parte do Cremesp já havia sido alertada pela jornalista Mônica Bergamo, que em, sua coluna no jornal imperialista Folha de S. Paulo, denunciou que a entidade da categoria os denunciava pela prática de “tortura, tratamento cruel, negligência, imprudência e até mesmo o assassinato de fetos” (“Conselho faz ofensiva contra médicos em SP por aborto legal em vítimas de estupro”, 29/4/2024). Como lembra Bergamo, as acusações foram feitas à revelia das leis vigentes no País, uma vez que “embriões não têm direitos previstos pela Constituição”, acrescenta.
Atualmente, o aborto é considerado legal no Brasil em situações de gravidez após estupro, de feto anencéfalo e quando há risco de morte materna, não sendo estabelecido, em lei, um limite gestacional para o procedimento. Os procedimentos em questão foram realizados no serviço de Aborto Legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo, e estavam relacionados a mulheres vítimas de violência sexual, com gestações superiores a 22 semanas.
O hospital é considerado referência nacional em procedimentos de aborto, sendo, por isso, alvo de ataques dos governos de direita, que, desde dezembro, suspenderam a realização de abortos no hospital, a pretexto de melhorar as instalações, o que, naturalmente, só convence pessoas desprovidas de senso crítico. Segundo denúncia do portal G1, “dois protocolos que comprovam que documentos sigilosos, de pacientes que fizeram aborto legal no hospital, foram repassados para a gestão municipal” (“Médicas que faziam aborto legal no Cachoeirinha são suspensas, diz sindicato; protocolos mostram que Prefeitura teve acesso a prontuários”, Walace Lara, Natália Koyama, 7/5/2024). São eles:
- “1º protocolo: do dia 4 de janeiro deste ano, em resposta a um e-mail de dezembro de 2023, com dois CDs com prontuários médicos de abortos legais – identificados pela sigla AL – realizados entre 2020 e 2021 foram recebidos na secretaria por Flavia Terzian, coordenadora de Assistência Hospital da Prefeitura.
- 2º protocolo: do dia 5 de janeiro sobre a entrega de mais um CD com prontuários de pacientes que fizeram aborto legal em 2022. Dessa vez o recebimento foi assinado por Marilande Marcolin, secretaria-executiva de Atenção Hospitalar da secretaria.” (Idem).
Também ao g1, o Sindicato dos Médicos (Simesp) afirmou que “as profissionais passaram a ser perseguidas depois que dados de pacientes foram acessados pela Secretária Municipal da Saúde”, ao que a reportagem informa que “as médicas estão recorrendo da decisão” e que “a polícia abriu investigação pelos acessos ilegais”. O sítio direitista Métropoles chegou a questionar a Secretaria Municipal da Saúde sobre a investigação em curso noticiada pelo G1, que, em resposta, afirmou não ter tido acesso a nenhum prontuário e que pretende colaborar com as investigações abertas pela Polícia Civil.
“A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) não acessou nenhum prontuário da unidade e está à disposição da Justiça, caso seja necessário, para eventuais esclarecimentos. A SMS reitera que está aguardando os desdobramentos finais pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) para a devida averiguação administrativa” (“Polícia apura se prefeitura acessou dados sigilosos sobre aborto legal”, Renan Porto, 7/5/2024).
A nota da SMS, no entanto, difere do posicionamento do titular da pasta, o secretário Luiz Carlos Zamarco, que à época da denúncia das falcatruas cometidas pela Secretaria, dissera que “a equipe técnica, junto com o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), tem autorização para verificar prontuários onde existe suspeita de irregularidade” (idem).
À época, a coluna da jornalista da Folha de S. Paulo também comentou a questão do vazamento de prontuários, informando que “pessoas familiarizadas com os processos administrativos” disseram à coluna de Bergamo que “todos os casos estão sendo analisados pelo conselho a partir de prontuários acessados de forma supostamente ilegal, uma vez que o sigilo médico foi quebrado sem o consentimento das pacientes envolvidas.” Por fim, Bergamo chama atenção para o ineditismo da situação, que evidencia uma verdadeira perseguição política:
“Especialistas do direito ouvidos pela coluna sob a condição de anonimato afirmam não ver precedentes na conduta adotada pelo conselho regional, que levanta suspeitas de perseguição institucional, e dizem temer que os serviços de aborto legal, hoje escassos, sejam ameaçados com a ofensiva.”
A colunista acrescenta, em sua conclusão, que causou “estranhamento o fato de as apurações serem iniciadas à revelia das pacientes, que jamais apresentaram qualquer queixa sobre o atendimento que receberam”, lembrando ainda que “se os profissionais tivessem se negado a prestar o atendimento previsto em lei, poderiam ter incorrido no crime de omissão de socorro.”
A perseguição política contra médicos que realizam procedimentos de aborto legal e em total conformidade com a legislação vigente é um escândalo. Esses profissionais, ao exercerem sua função de garantir o acesso à saúde e à autonomia reprodutiva das mulheres, estão cumprindo com o seu dever profissional e legal.
A ameaça de cassação de registros médicos por motivos políticos não coloca apenas esses médicos em risco, mas também compromete o acesso das mulheres aos serviços de saúde reprodutiva seguros e legais, que, dado o verdadeiro faroeste instaurado no País, sem encontram completamente desamparadas. É fundamental que as organizações de luta dos trabalhadores e os movimentos sociais denunciem a reprodução dos métodos consagrados pela ditadura de Alexandre de Moraes, onde órgãos burocráticos decidem o que a conveniência política lhes determina, ao arrepio da lei.
É preciso uma ampla mobilização para rejeitar tentativas reacionárias de atacar os poucos direitos ao aborto legal conquistados pelas mulheres.