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Entrevista exclusiva

Maria Lúcia Fatorelli: ‘tudo tem teto, menos a dívida’

Coordenadora do do movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida falou à Causa Operária sobre o sistema criminoso que escraviza o povo brasileiro

Causa Operária: Uma apresentação do movimento de Auditoria Cidadã da Dívida?

Maria Lucia Fattorelli: Há vinte e quatro anos, esse movimento nasceu. No contexto do grande plebiscito popular realizado no ano 2000 que questionava a dívida pública, tanto externa como interna. Eram três perguntas, uma delas questionava exatamente, “você concorda em continuar pagando a dívida pública sem realizar a auditoria que está prevista na Constituição Federal de 1988?

Lá nos anos 2000 não existiam redes sociais e esse plebiscito foi realizado nas praças, na porta de sindicatos, associações de trabalhadores, igrejas e movimentos sociais. Em Belo Horizonte a gente ia em feiras coletar votos, explicar sobre o plebiscito.

Naquela época eu já vinha no sindicato [de auditores fiscais] questionando, pesquisando o orçamento público, porque vínhamos de uma década de salários congelados no setor público, com o governo Fernando Henrique Cardoso, e tínhamos iniciado um grande estudo sobre Orçamento e a dívida pública, que era a disputa que já fazíamos na época. E ao fazer essa pesquisa, vimos que a figura do orçamento era a mesma que a gente vê hoje, quase metade dos recursos federais se destinando ao pagamento de juros e amortização da dívida. E os sindicatos começaram a perguntar a respeito. 

O plebiscito foi um sucesso com mais de seis milhões de votos. Os resultados foram entregues ao poder Executivo, Legislativo e Judiciário em Brasília, e não aconteceu absolutamente nada. Nenhum dos poderes se moveu diante da grande mobilização que envolveu seis milhões de pessoas e expressou a vontade popular.

Após o plebiscito houve uma importante reunião em Brasília, com mais de oitenta lideranças nacionais, e como nenhum órgão oficial, agiu diante da mobilização popular se colocou a discussão do que fazer, “vamos deixar isso prá lá, não podemos” e surgiu a ideia de criar um movimento para manter a Dívida Pública em debate, para continuar pesquisando e auditando, mesmo de forma popular, surgindo o movimento de Auditoria Cidadã da Dívida, feita por cidadãos e para os cidadãos.

Como eu era auditora, já vinha estudando a dívida, estava longe de me aposentar na época, me pediram para coordenar o movimento e estou aqui há 20 anos, com muita honra. Pois tenho visto que o movimento tem acordado muita gente, tem desmistificado a questão de que só especialista pode conhecer sobre a área econômica, o que é uma grande mentira, pois é o povo quem está pagando a conta e o povo precisa conhecer.

E não tem sentido ficar falando aqueles termos, o chamado economês, a gente tem que falar o que o povo entende, e é isso que a auditoria cidadã tem procurado fazer. Traduzindo o orçamento público em gráfico, traduzindo esses planos mirabolantes em linguagem acessível para a população, para que as pessoas entendam como elas estão pagando essa conta.

Causa Operária: A Auditoria Cidadã da Dívida têm denunciado sistematicamente o problema do rombo no Orçamento que é provocado pelo pagamento dos juros e amortização da Dívida, ou seja, nem o pagamento da dívida em si.

Aproveitando que estamos no encerramento do ano, já existem os números do que o sistema financeiro levou do Orçamento do país em 2024?

Maria Lucia Fattorelli: Estão disponíveis os dados até Novembro, que só de juros já está em quase R$900 bilhões. Fora os outros mecanismos, como a Bolsa Banqueiro, os outros meios de amortizações, e outros gastos que eles jogam para a conta da Dívida. Porque quando a gente fala o valor dos juros que aparece lá no Siope, que é o Sistema de contabilidade pública do governo, não é a conta toda dos juros. Então a gente procura juntar tudo para as pessoas terem uma ideia do gasto real (porque é meio diluído). 

O gráfico executado no ano de 2024 só vai ser possível fazer quando o governo divulgar os resultados de Dezembro, e raramente é divulgado em Janeiro. Só lá para final de Fevereiro é que tem o compilado de Dezembro e a gente ainda tem que observar algumas coisas que ficam em restos a pagar, algumas coisas que eles vão retificando depois. Então geralmente, a gente espera até Fevereiro para divulgar o dado mais consolidado e não precisar ficar retificando, com mudanças que possam ser feitas pelo governo. Então a gente espera um pouquinho para divulgar.

Causa Operária: Mas o gasto vem crescendo ano a ano. Por quê?

Maria Lucia Fattorelli: Porque mesmo cortando em todas as áreas sociais, os juros são altos demais. Mesmo com esses pacotes de cortes, que desde Temer estão previstos pela Emenda Constitucional 95 (2016), que estabeleceu um teto para os investimentos sociais. Depois veio o arcabouço (fiscal), já neste governo, que manteve o teto com uma flexibilidade mínima. Então, enquanto todos os gastos sociais estão submetidos ao teto, o gasto com a dívida não tem teto, não tem limite algum.

O Banco Central acabou de aumentar os juros em 1% e a cada 1% que aumenta a Selic, são 55 bilhões a mais de gastos com juros por ano. Um gasto que vai se repetir todo ano.

Causa Operária: Campos Neto, indicado de Bolsonaro, aumentou agora e já deixou previstos aumentos na taxa Selic para 2025. O aumento dos juros, além de todos os outros prejuízos, aumenta os recursos que vão ser destinados ao sistema financeiro? 

Fattorelli: Veja bem, se você pega uma dívida que já está gigante, e a dívida interna já está em quase 9 trilhões um e uma taxa que já estava elevadíssima de 11,25% e acrescenta 1%, é um prejuízo imenso.

E não é só a Selic. Os títulos da Selic pagavam 11,25% e vão passar a pagar 12,25% e tem outros títulos. Como os títulos prefixados que são o filé dos filés e pagam mais de 20% de juros. São aqueles que só os bancos conseguem comprar e ficam com eles, claro, não vendem pra ninguém.

Então a taxa média de gastos com juros divulgada pelo tesouro nacional historicamente fica sempre acima da Selic, porque tem títulos indexados à Selic e tem títulos que pagam mais do que a selic, mas o próprio Banco central fala que a cada 1% na taxa básica de juros que é a a Selic, garante 55 bilhões a mais por ano aos bancos via pagamento da dívida pública. Então se a conta de juros já está em 900 bilhões, vai ficar 955 bi.

E eles já colocaram as próximas duas previsões da taxa porque quem vai assumir o Banco Central é o indicado por Lula, e a expectativa geral é que o Galipolo, quando assumisse implementasse a queda dos juros, que é o que o Lula vem falando desde a campanha e desde que ele tomou posse. Para não correr esse risco, embora o Galipolo tenha votado nos últimos aumentos da Selic.

Para tirar qualquer resquício de risco para o mercado, já colocaram na Ata do Copom que vai ter mais 1% de aumento de juros nas duas próximas reuniões em 2025.

Causa Operária: As próximas reuniões não terão autonomia. Já está definido o reajuste da taxa de juros e o indicado por Lula não vai poder alterar isso

Fattorelli: E vai ter toda desculpa para não alterar. Isso deixa praticamente sacramentado que o juro vai chegar a 14,25% nas duas próximas reuniões do Copom, que foi o patamar que chegou

ali em 2025, quando o chamado mercado queria derrubar a presidenta Dilma.

Causa Operária: O que é muito grave, indica também uma ameaça ao próprio Governo?

Fattorelli: Indica porque quando você sobe os juros de maneira exagerada, principalmente aqui no Brasil, onde o Banco Central age completamente de costas para a economia brasileira, abusando das operações compromissadas, que é aquela operação em que o Banco Central tem o poder de enxugar a moeda do mercado. Ele tem o poder de achar que tem muita moeda em circulação. Então fala com o banco “vou reter a moeda” e ainda retém além do compulsório, que é o obrigatório. Ele retém mais ou permite que o banco deposite o que o banco quer.

O último dado disponível dessa operação, que foi de Outubro, chegou a 1 trilhão 750 bilhões de dinheiro da sociedade, de todo mundo, nesse país que tem conta bancária, de todas as empresas, o nosso dinheiro está aplicado ou depositado em banco.

Os bancos vão lá, depositam o nosso dinheiro no Banco Central e o Banco Central paga juros para os bancos, paga Selic, ou mais. E os bancos se aproveitam dessa remuneração e oferecem empréstimos para a sociedade somente a juro exorbitante. Qualquer um que está assistindo essa entrevista pode fazer um teste.

Causa Operária: Então eles ganham do governo com o nosso dinheiro e da gente que paga o empréstimo a juros altíssimos.

Fattorelli: Ganha de todos os lados e prejudicam a sociedade de uma forma brutal, porque esse dinheiro fica esterilizado lá no Banco Central. R$1 trilhão 750 bilhões, atualmente que deveria estar circulando. É dinheiro da sociedade. Imagina se as empresas, principalmente as pequenas empresas, que são a imensa maioria das pessoas jurídicas no Brasil, com acesso a essevcrédito! É gente que não tem capital de giro, que precisa, às vezes, de um empréstimo para atualizar uma máquina, atualizar uma tecnologia, comprar mais matéria prima, contratar um ajudante. Essas pessoas só conseguem expandir ou, às vezes, até aceitar uma encomenda atrativa se fizer um investimento, mas ela não tem o dinheiro. Então ela precisa acessar empréstimo. Mas não encontra empréstimo bancário por menos de 100% ao ano. Qualquer um que está aí nos assistindo pode fazer o teste no seu aplicativo.

É muito difícil você conseguir um empréstimo por menos de 100% ao ano. Aliás, tenham cuidado. Os bancos às vezes colocam a taxa mensal, e aparece como 12%, mas é mensal. Tem que olhar a taxa anual, e ela ultrapassa os 100%. E as pessoas desistem, porque ela sabe que o retorno do negócio dela não vai ser nesse nível. E como é que ela vai pagar um juro de mais de 100%?

Então, essa esterilização de moeda antes de qualquer coisa é uma remuneração injustificada. Por isso a gente chama essa remuneração de Bolsa Banqueiro. É um presente que o governo dá para os bancos através do Banco Central. Porque não há justificativa para o Banco Central remunerar os bancos sobre um dinheiro que sequer pertence a eles e que provoca um dano enorme à economia do país ao gerar escassez de moeda, aumentando o juro de mercado e prejudicando as contas públicas.

Por quê prejudica as contas? Porque essa operação é feita com uma uma troca de títulos. Por exemplo, os bancos não compram os títulos. Os bancos colocam o dinheiro da sociedade no Banco Central e o Banco Central coloca o título na mão dos bancos. É uma operação que pode durar só um dia [noite]. E o título vai para a mão dos bancos apenas para justificar pagamento de juro, porque é injustificável. Não tem justificativa para esse pagamento de juro. 

Causa Operária: O título vai para os bancos só para dizer que tem uma troca, para eles manterem o pagamento do sistema financeiro?

Fattorelli: Exato. É um absurdo. A Auditoria Cidadã vem denunciando essa Bolsa Banqueiro e a sociedade brasileira, as centrais sindicais, os sindicatos, as associações precisam se apropriar desse discurso, dessa formulação que nós fizemos da Bolsa Banqueiro.

Pois, para começo de conversa, enquanto nós tivermos essa esterilização de moeda o juro não cai. Segundo essa operação, faz a dívida explodir. No ano passado, em 2023, foram mais de R$220 bilhões de juros pagos aos bancos nas operações de remuneração de juros aos bancos. Mais de R$220 bilhões gastos pelo Banco Central com juros para remunerar bancos.

Enquanto isso, estamos sofrendo um corte no Orçamento que vai de 2025 a 2030 e pretende cortar R$371 bilhões, em seis anos. Sacrificando salário mínimo, Benefício de Prestação Continuada (BPC), abono salarial, área da Educação, porque o Fundeb está sendo drasticamente afetado, quer dizer, afetando toda a área social, que já está à míngua de recursos há muito tempo. 

Agora, compare comigo, em seis anos de sacrifício o governo pretende economizar, entre muitas aspas, porque isso não é economia, é sacrifício, R$371 bilhões, mas em um ano, em 2023 apenas a Bolsa Banqueiro levou R$222 bilhões do Orçamento.

Causa Operária: Achamos a fonte da economia do recurso nacional. É só parar de pagar juros dos bancos.

Fattorelli: Mas não adianta ficar só a Auditoria Cidadã ficar falando isso, é preciso os sindicatos, o movimento se apropriar disso.

Causa Operária: Em uma canetada o COPOM conseguiu fazer com que a suposta economia com os cortes do pacote do Haddad se tornassem insignificantes, é isso mesmo?

Fattorelli: Por isso que a gente fica repetindo que o rombo não está e nunca esteve nos investimentos sociais. Pelo contrário, o rombo está e sempre esteve no gasto financeiro estéril com o sistema da dívida

E por que é estéreo? Porque no Brasil, para completar a infâmia, nós temos uma dívida que não tem servido para investimentos. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU), provocado pelo Senado Federal, pelo então Senador Álvaro Dias, que fez um requerimento aprovado no plenário do Senado, para que o Tribunal de Contas investigasse qual era a contrapartida da dívida. O senador, por sua vez, foi provocado pela Auditoria Cidadã, que vivia falando que essa dívida não tem contrapartida em investimento, é dívida de juros sobre juros e mecanismos financeiros. O TCU apresentou resultado em uma audiência pública no Senado, e confirmou que não tem contrapartida em nenhum investimento.

Na cartilha publicada pela Auditoria Cidadã em 2023, ela está disponível gratuitamente na página da Auditoria Cidadã, na página treze, se não me engano, tem a tela que o Tribunal de Contas da União publicou. Palavras do Tribunal de Contas: “nenhuma despesa classificada como investimentos foi custeada com recursos da emissão de títulos da dívida”. Então nós temos uma dívida que não serve para investimentos, que é feita de mecanismos financeiros, juros sobre juros, sem contrapartida alguma. Uma dívida que tem sido a justificativa para cortes, para contra reformas que retiram direitos da população, principalmente da Previdência,

privatizações do patrimônio público, construído com o nosso dinheiro. E depois a população fica à míngua. É só olhar o setor elétrico, os apagões, e tudo que foi privatizado. A população fica prejudicada com a prestação do serviço prestado, que encarece e piora.

A dívida está por trás de tudo isso. Então chega a ser inacreditável como tanta gente luta sem fazer essa conexão com o sistema da dívida, com a necessidade de, por exemplo, lutar por mais recursos para a Educação, e também lutar pelo enfrentamento do sistema da dívida através de uma auditoria.

Causa Operária: A conclusão é que o dinheiro existe, só que não está indo para onde ele deveria ir.

Fattorelli: Pra não ficar só dizendo que quer mais recursos para a Educação, mas mostrar onde está problema. O rombo está aqui. A grana existe, mas olha os trilhões sendo destinandos para o pagamento desses juros de uma dívida que nem contrapartida tem em investimento.

Causa Operária: Nesse aspecto, falando do pacote, você comentou o problema da redução do índice de reajuste do salário mínimo, que é uma das coisas que vai ser sacrificada. A economia que se pretende é de R$109 bilhões ao longo desses anos. Isso significa que é uma transferência direta do dinheiro que estaria para a maioria da população que vive a partir da base do salário nacional, que é o salário mínimo, que está indo para os banqueiros.

Fattorelli: É exatamente isso, infelizmente, e neste governo, o que é mais revoltante ainda.

Por isso que outro dia eu dei uma entrevista e falei: “Olha, depois desse pacote, nós temos outro Lula”. Porque até então, alguns ataques já foram feitos pelos governos petistas contra a classe trabalhadora. Já tivemos reformas da previdência, e outros ataques, mas agora é diretamente ao salário mínimo. Isso pega toda a classe trabalhadora, porque os salários são calculados sempre tendo como referência o aumento do salário mínimo. 

As convenções que a classe trabalhadora das diversas áreas consegue sempre se baseia na evolução do salário mínimo. Não tem atrelamento direto, mas sempre tem uma referência no aumento do salário mínimo. A maioria da população ganha salário mínimo, e o salário mínimo no Brasil já é muito baixo. Nós temos uma base de salário mínimo aqui das mais baixas do mundo, o que é uma vergonha.  Por isso que o Brasil é um dos países mais desiguais do planeta. Quem é rico é rico demais e à custa de quê? Da imensa maioria que é mantida muito pobre.

Então, a política de reajuste real do salário mínimo é uma política mais do que necessária, porque o valor é muito baixo. O salário calculado pelo Dieese, por exemplo, é de mais de R$6.000,00, o salário ideal para a pessoa ter qualidade de vida mínima e dar conta de moradia, vestuário, alimentação, transporte, medicamento, etc, etc. No último cálculo era mais de  6 mil reais. Mas não dá para passar de uma vez R$1.420,00 para R$6.000,00; então a política de reajuste real acima da inflação é uma política urgente, porque as pessoas estão muito sacrificadas.

A última legislação nesse sentido, aprovada ano passado, bem recente em 2023, é que seria o reajuste pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), acrescido do crescimento do PIB de dois anos anteriores. Essa lei ficou em vigor só um ano, porque agora já veio essa outra proposta do pacote, de o reajuste do salário mínimo ficar dentro do limite do arcabouço fiscal, que é atualização monetária, mais um crescimento real que vai de 0,6% a no máximo 2,5%. Sendo que só vai chegar a 2,5% se cumpridas todas as regras do arcabouço fiscal, que exige superávit primário, que exige cumprimento de meta, exige aumento de arrecadação, uma série de coisas.

O que vai acontecer com isso? Nós vamos ter praticamente um congelamento de salário mínimo, que é a correção pela inflação, não tem ganho real nenhum. E aumentar 0,6% ou um pouquinho a mais é praticamente nada. Como a gente não tem bola de cristal para ver como vai ficar daqui pra frente, nós fizemos a conta do que aconteceu no passado até aqui.

Se essa regra estivesse em vigor lá em mil novecentos e noventa e quatro, quando foi instituído o Plano Real, em Janeiro de 2024, quando o salário mínimo foi para R$1.420,00, de acordo com essa nova regra do pacote de Haddad e Lula e o o salário mínimo estaria em R$1.095,00. Uma diferença de mais de R$300,00.

Isso é inaceitável porque vai afetar todo trabalhador, toda trabalhadora que ganha salário mínimo, vai afetar os aposentados, pensionistas, e todos os benefícios sociais que são calculados com base no salário, então imensa maioria da população.

O que está previsto para o BPC também é terrível. O BPC é o benefício de prestação continuada, que é pago somente a pessoas muito pobres, que tenham mais de 65 anos e não conseguiram se aposentar nunca, porque não conseguiram efetuar contribuições ou os seus empregadores sempre as exploraram e não efetuaram as contribuições, ou pessoas deficientes que tenham alguma deficiente física, alguma deficiência física e todos os casos, gente muito pobre, cuja renda per capita familiar seja de até um quarto do salário mínimo. É gente muito pobre. O pacote está instituindo que essa renda familiar pega até quem não mora na mesma casa. Vamos supor que uma família tem um filho que tem uma deficiência e essa deficiência pode ser até relacionada com o uso de droga e convivência muito difícil. Essa família coloca essa pessoa para morar num quartinho separado. Hoje, essa pessoa recebe o BPC, porque ela é considerada uma família de uma pessoa só. Ela é uma pessoa sozinha. Com a nova regra se outra pessoa da casa recebe o BPC por ser idosa, ou recebe Bolsa Família vai passar daquele um quarto de salário mínimo previsto e ela vai perder o benefício. Então, a renda das famílias vai diminuir drasticamente. É inaceitável um ataque a um benefício como esse em um país já tão desigual. 

A questão do abono também é um problema. Vão excluir o grupo de pessoas que ganham entre um e meio a dois salários mínimos ao mês. Porque até hoje, quem ganha dois salários mínimos por mês tem direito a um abono de um salário mínimo no fim do ano, o que o pacote faz? vai reduzir gradativamente de tal forma que somente aqueles trabalhadores e trabalhadoras que recebem até um salário mínimo e meio terão direito ao abono salarial anual. Quem recebe entre um e meio e dois salários, vai perder o abono.

Pessoas que recebem menos de R$3.000,00 por mês. É ridículo cortar dessa camada da sociedade.

Causa Operária: Tirar desses para garantir o pagamento dos mais ricos, dos banqueiros.

Fattorelli: Ainda mais que esses juros pagos a quem não precisa são juros abusivos. Não tem justificativa para esse patamar de juros pago no Brasil, não tem justificativa nem técnica, nem científica, nem econômica, nem jurídica. É abuso, é uma transferência abusada de rendimento de receitas públicas, receitas do povo para um setor extremamente privilegiado que vive de juros sem trabalhar.

Causa Operária: Você consegue dizer qual é o tamanho do sacrifício que a população brasileira tem tido que fazer para manter o pagamento dessa dívida, que é impagável?

Fattorelli: Olha, atualmente, do Orçamento Federal vai quase a metade todo ano. Vai mais de 40% do Orçamento Federal todos os anos para o sistema financeiro. E o sacrifício não é só aí. O sacrifício é esse, já que poderíamos ter um investimento muito maior em Educação, em Saúde, investimentos produtivos e tudo mais, se não tivesse esse ralo dos juros, como também nas contrarreformas. Essa dívida, além de afetar diretamente o Orçamento, acaba sendo usada como justificativa para retirar direitos da população através de reformas da Previdência, por exemplo. Quantas nós já tivemos? Na minha vida laboral, várias. E os jornais já estão falando em fazer outra reforma da Previdência.

Então, a população tem pago através do corte orçamentário, através da retirada de direitos, das contrarreformas, da perda de patrimônio público, e tudo. Isso nos leva também ao acirramento desse modelo econômico, que produz escassez para a imensa maioria, para que a receita e a renda sejam concentradas nessa minoria privilegiada do setor financeiro.

Então, essa escassez, acaba gerando uma degradação do nosso tecido social, leva ao desalento, porque as pessoas veem que trabalham tanto e não saem do lugar, e não conseguem oferecer uma vida melhor para os seus filhos. Isso traz desalento, desânimo para a população. Isso é terrível. Para o país nós precisamos do contrário. Eu falo que a gente vive no avesso do Brasil, que a gente poderia ter. Porque o Brasil é um país riquíssimo em todos os aspectos, não só em recursos naturais. Nós temos mais de cinco trilhões de reais guardados na gaveta. Esse trilhão setecentos e cinquenta no caixa do Banco Central que tinha que estar circulando na economia, gerando emprego, renda, investimento, etc. Temos mais de quase um trilhão e meio, no caixa único do tesouro; temos cerca de dois trilhões e duzentos em reservas internacionais. Tudo isso na gaveta, parado, e o povo à míngua.

E temos, além disso, todas as riquezas naturais. Olha a maravilha do Brasil. Três safras por ano, nenhum país tem isso. Como explicar a escassez e ter até hoje pessoas passando fome? Gente sem moradia, sem acesso aos direitos básicos de Saúde e Educação dignas.

Por isso que a gente luta. A gente não luta para divulgar dados de dívida, falar sobre dívida. Isso aí não teria importância alguma.

A gente enfrenta o sistema da dívida. Um assunto nada fácil, nada agradável. Mas a gente enfrenta, porque a gente já percebeu há muitos anos que o nó que amarra o Brasil é esse sistema da dívida e suas conexões, porque é um sistema. Não é só a dívida. Não é uma coisa fechada em si mesma. É um sistema que se relaciona com todo o modelo econômico, com o modus operandi do Orçamento, com a grande mídia, com a corrupção, porque é um sistema corrupto em si, que rouba, rouba da maioria da população para privilegiar uma minoria. Ele está relacionado ao sistema jurídico, político, legal, que aprova leis que vão respaldar essa roubalheira.

A gente tem que sair do avesso. A gente tem que sair do avesso, porque esse cenário de escassez, eu gosto de usar essa palavra porque cenário é uma coisa que a gente pode ir lá e arrancar e colocar outro, esse cenário de escassez não tem nada a ver com a realidade concreta verdadeira que existe aqui, que é uma realidade de abundância em todos os sentidos do nosso país. E a gente está vendo o nosso povo desanimado, sofrido, explorado por conta desse sistema da dívida.

Causa Operária: Para vocês, o que é preciso fazer diante dessa situação toda?

Fattorelli: A Auditoria nada mais é do que uma ferramenta de investigação. É uma ferramenta que tem lá várias técnicas, vários procedimentos para você chegar à verdade daquele tema. A auditoria é uma ferramenta que pode ser aplicada a várias coisas, inclusive a uma dívida. Ainda mais uma dívida pública. 

Esse ciclo que a gente vive desde a Ditadura Militar é totalmente obscuro. A maior parte da dívida externa, ali na Ditadura Militar, não tem explicação nos contratos disponíveis. Nós já investigamos isso. Há vários refinanciamentos questionáveis, suspeita de prescrição que foi ignorada, título podre que foi trocado em paraíso fiscal e aplicado depois para a compra de nossas empresas privatizadas, nos anos 90. E tudo isso só através de investigação, para a gente poder falar com segurança, como eu estou falando aqui agora. Eu já vi os documentos, já sei que isso é a realidade.

Por isso eu peço que todo mundo se aproprie dessas informações, para que esse discurso, por uma Auditoria Oficial dessa Dívida, com participação popular,

aconteça. Para quê? Para que essa verdade toda venha à tona e a gente separe o que é dívida que tem que ser paga, e o que são esses mecanismos que fizeram a dívida se multiplicar por ela mesma, que tem que ser parados e anulados. E o dinheiro tem que ser devolvido. No dia que conseguirmos isso, a gente sai do avesso. Porque dinheiro não falta no Brasil.

A auditoria é essa ferramenta. E o que eu sugiro para as pessoas é acompanharem as redes sociais da Auditoria. Vocês não imaginam o esforço que a gente faz para termos quatro posts diariamente nas nossas redes, no nosso site, e tudo para procurar relacionar os fatos que estão acontecendo na economia do país, com o sistema da dívida, para as pessoas irem percebendo. Porque o noticiário da grande mídia coloca a população quase como culpada de tudo.

A gente precisa divulgar a realidade, investigar bem investigado, para que a população apoie esse movimento, faça parte, para que a gente consiga realmente criar uma grande força consciente, sair do avesso e todo mundo ter acesso à riqueza abundante que existe nesse país.

A gente vai continuar essa luta. Agradeço essa entrevista e peço a todo mundo para acessar as redes sociais da Auditoria Cidadã.

* Entrevista realizada em 17 de dezembro de 2024.

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