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Henrique Áreas de Araujo

Militante do PCO, é membro do Comitê Central do partido. É coordenador do GARI (Grupo por Uma Arte Revolucionária e Independente) e vocalista da banda Revolução Permanente. Formado em Política pela Unicamp, participou do movimento estudantil. É trabalhador demitido político dos Correios e foi diretor da Fentect (Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios)

Coluna

Mais uma ópera nacional vandalizada pela ‘elite paulista’

O identitarismo impõe sua própria interpretação da ópera de Francisco Mignone, O contractador de diamantes

Ocorreu nessa terça, 2 de julho, a última apresentação da ópera O contractador de diamantes, do compositor brasileiro Francisco Mignone (1897-1986), como parte da temporada 2024 de óperas do Theatro Municipal de São Paulo.

As montagens de óperas nacionais não são comuns. Até certo ponto, isso é normal, afinal, infelizmente o Brasil acaba perdendo em quantidade em meio a tantas óperas internacionais importantes que todos os amantes da boa arte querem ver encenadas. Fato é que a oportunidade de assistir a uma brasileira é recebida com entusiasmo. Seria assim, não fosse a política da burguesia de vandalizar a cultura nacional.

Foi assim com a montagem de O Guarani, encenado no mesmo teatro na temporada de 2023, sobre a qual falamos neste Diário, foi assim com a ópera de Mignone, encenada nesta temporada.

Antes de comentar sobre a ópera, nunca é demais lembrar o que é o identitarismo. Em sua, uma ideologia reacionária, travestida de progressista, impulsionada com muita propaganda e dinheiro pelo imperialismo. Quando dizemos imperialismo, estamos falando dos setores mais poderosos do mundo. Por conta disso, o identitarismo já se tornou a ideologia atual da classe dominante, por isso, não é de se estranhar que ela esteja nas universidade e nos círculos oficiais da cultura, como é o caso do Theatro Municipal.

E é baseada em tal ideologia reacionária com carinha de progressista que foi apresentada a montagem da ópera de Mignone no Municipal. O libreto da ópera foi escrito pelo italiano Gerolamo Bottoni. A obra é de 1921, tendo sua primeira apresentação em 1924, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A primeira escolha dessa montagem no Municipal foi a tradução do libreto. Os produtores do Theatro Municipal decidiram fazer uma versão em português da ópera, o que parece um tratamento leviano com a obra. Pode-se gostar ou não, mas o libreto em italiano era comum. Primeiro que o próprio libretista era italiano, já que foi composta quando Mignone estava estudando na Itália, mas também porque a língua facilitava a adesão dos principais cantores da época. Além disso, era uma aposta para o ingresso da obra no circuito internacional, muito mais difícil se fosse em português.

A tradução do libreto acaba criando algumas distorções em relação ao que o texto original pretende mostrar. Por mais cuidadosa que seja a tradução, a diferença entre as línguas acaba obrigando alterações para que as palavras se encaixem na métrica da melodia.

Há ainda outro problema na decisão por traduzir a obra. Justamente no ponto alto da ópera, no segundo e terceiro ato, há um coro em português, que interage perfeitamente com os elementos da música folclórica brasileira. Ao traduzir a ópera inteira, perde-se o efeito que o compositor conseguiu produzir com tal transição de idioma. O crítico e historiador da arte, Jorge Coli, em artigo no ano passado, quando a mesma montagem da ópera (mas sem a tradução) foi estreada em Manaus, afirma corretamente: “Nos segundos e terceiros atos, faz apelo à música folclórica brasileira, e o coro, então canta em português. A integração desses dois universos, nacional e internacional, não poderia ser mais feliz: nada soa artificial, nem enxertado. Tudo brota com uma extraordinária naturalidade” (Festival Amazonas faz história com ópera de Francisco Mignone, concerto.com.br, 25/04/2024). Os produtores do Theatro Municipal acabaram por tirar essa naturalidade e, para piorar, acabaram por fazer a obra toda soar artificial.

Aliás, o ponto alto da obra, a Congada, perde também o impacto na montagem do Theatro Municipal. Não pela execução do corpo de balé, que realmente foi muito bem feita. A perda desse efeito musical se deu pela opção dos produtores ao modificar a ópera.

No primeiro ato, a dança do minueto, tipicamente europeia e da Corte, foi transformada em algo indefinido. Colocaram bailarinos negros para dançarem algo que lembrava o minueto, mas que também poderia lembrar alguma dança folclórica e, para piorar, enfiaram um tambor em cena, atravessando a orquestra. Ou seja, inventaram um minueto, dançado por negros ao som de uma batuque. Logicamente que o identitarismo é a única explicação para tal coisa.

Ao fazerem isso, os produtores do Municipal acabaram por destruir todo efeito da Congada. É muito óbvia a intenção de Mignone de contrapor as duas danças, dando à Congada o aspecto grandioso da cultura nacional, valorizando-a em comparação à dança de salão da Corte. Ao colocar um tambor artificial no Minueto, os produtores acabaram por desfazer tal efeito.

O responsável pela encenação, William Pereira, justificou a tradução da ópera para o português da seguinte forma: “a ideia com a versão em português foi tirar esse aspecto de pastiche e de nacionalismo parnasiano que a ópera tem, e lhe dar força e legitimidade” (Municipal de São Paulo encena ‘O contractador de diamantes’, de Francisco Mignone, em português, concerto.com.br, 28/06/2024). Se a ideia era retirar um suposto “aspecto de pastiche”, é triste dizer que o que os produtores do Municipal conseguiram foi um enorme pastiche do início ao fim do espetáculo, se é que podemos falar assim. Digamos que, mais precisamente, os produtores fizerem uma espécie “pastiche ideológico” na obra, colocando ali elementos artificiais.

A declaração também revela a leviandade com a qual é tratada a obra, conforme dissemos acima. Se os produtores do municipal não gostam da obra de Mignone, eles têm todo o direito de terem sua opinião. Eles têm todo o direito de fazer uma obra que esteja a seu gosto. Mas é muita pretensão achar que se pode alterar a obra de um compositor de 100 anos atrás e achar que fizeram melhor assim. Se eles acham que a obra é de um “nacionalismo parnasiano” e isso seria ruim, deixe que o público tire suas próprias conclusões. Para que mudar a obra de acordo com as concepções daqueles que estariam ali apenas para produzir um espetáculo de uma obra de um século de existência?

Nossa sugestão é que os produtores do municipal utilizem toda essa criatividade que eles acham que possuem para fazerem suas próprias obras, não para alterar a obra alheia, usando o cargo que possuem no órgão que, apesar da política privatista da direita brasileira, não deixa de ser um órgão público.

O que explica essa concepção é identitarismo. E isso fica claro logo antes de começar o espetáculo, quando um violeiro foi colocado no início da encenação para fazer uma espécie de advertência. O personagem principal, Felisberto Caldeira Brant, é o herói da peça, é ele o Contratador de Diamantes. Mas como ele era um rico, dono dos direitos de exploração de minérios em Minas Gerais no século XVIII, cabe aos moralizadores identitários dizer que ele não era “bem um herói” e a sua luta pela independência do Brasil estaria movidas por interesses mesquinhos e assim por diante.

A advertência identitária da peça diz também que Francisco Mignone teria adotado o nome de Chico Bororó para disfarçar sua origem “elitista”, o que é uma enorme besteira, já que o compositor era apenas um filho de imigrante italiano flautista, provavelmente de classe média, que ensinou música ao filho, e seu pseudônimo fora adotado nas rodas de choro que frequentava na boemia de São Paulo, antes de ir estudar na Itália.

É preciso fazer um apelo aos identitários: deixe que o público interprete como quiser as obras de arte. Eis outro aspecto reacionário do identitarismo que é considerar o povo incapaz de compreender as coisas. E o pior, a interpretação dos identitários é sempre errada, o que os deixa sem autoridade para tal.

O interessante disso tudo é que as peças brasileiras são as principais vítimas dessa fúria de ignorância. A montagem de O Guarani, no ano passado, foi vítima de um verdadeiro vandalismo no mesmo Municipal. E agora, a obra de Mignone. Não que outras encenações também não tenham sido vítimas das loucuras identitárias, Carmen, de Bizet, encenada no mesmo Municipal em maio, teve também algumas extravagâncias identitárias, mas que não prejudicaram de todo a obra. Porém, certamente são as obras brasileiras os principais alvos da ideologia reacionária e revisionista da história.

Esse fato se explica porque há um esforço da elite brasileira – a verdadeira elite, não aquela de séculos atrás, mas a burguesia de agora – comandada pela elite internacional, por destruir a cultura nacional. A ópera de Mignone, por exemplo, tem desfecho nacionalista. O herói da peça, preso e exilado pela Corte Portuguesa, acaba levantando o povo. E é com o povo, pedindo a liberdade do Brasil, que a ópera se encerra.

Que pecado pedir a liberdade do Brasil, essa terra tão ruim, fruto de estupros, explorações, racismo etc. Eis o serviço do identitarismo contra o povo brasileiro.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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