No artigo O que é a ‘polinização cruzada’ na política, que faz extremistas usarem argumentos da direita e da esquerda, publicado originalmente pela BBC News Brasil, Giulia Granchi apresenta um fenômeno que chama de “polinização cruzada” como uma grande ameaça para a sociedade. A expressão, que vem da biologia, serviria para designar “a troca ou mistura de ideias extremistas entre grupos de espectros políticos aparentemente antagônicos“.
Curiosamente, a tal “polinização” não serve para classificar qualquer organização que seja uma defensora da ordem vigente. O Partido Democrata norte-americano, que possui uma relação com os sindicatos e que se diz porta-voz do movimento negro, ao mesmo tempo em que defende o Estado mais racista do planeta, que é “Israel”, não seria uma organização “polinizada”? O Partido Social-Democrata Alemão, que se reivindica como a “esquerda” em oposição à extrema direita hitlerista, mas apoia o regime nazista da Ucrânia, também não seria uma organização “polinizada”?
Por esses exemplos, já fica claro que exigir uma coerência programática de organizações pequenas ou mesmo de indivíduos isolados, quando as grandes organizações por trás dos regimes políticos não a possuem, é puro cinismo.
Mas a incoerência em si não é a grande preocupação da autora. Como ela mesmo define, a “polinização cruzada” é um fenômeno relacionado a “ideias extremistas”. O que podemos traduzir como “ideias que não são defendidas pelas classes dominantes”. No final das contas, a expressão “polinização cruzada” não serve para designar qualquer antagonismo, mas sim para criticar pessoas e organizações que se interessam por questões que não são consideradas “senso comum”. Ou seja, que não são adeptas das mentiras contadas pelos grandes órgãos de imprensa, nem pelos governos controlados pelos banqueiros.
Isso fica ainda mais claro quando Giulia Granchi apresenta seus referenciais teóricos. “Em 2020, Christopher Way, diretor do FBI, usou o termo ‘salad bar ideology’ (algo como “ideologia self-service”), para descrever essa mistura de ideias que culminam em um extremismo violento. Segundo Way, para quem trabalha com antiterrorismo, tentar encaixar os discursos em categorias bem definidas é um desafio“.
A autora nem disfarça que sua teoria, longe de ser uma análise séria sobre um fenômeno político, é obra da polícia federal norte-americana, o FBI! Não se trata sequer, portanto, de uma teoria, mas de pura propaganda. E em nome de quê? O próprio diretor do FBI responde: o combate ao “terrorismo”. Isto é, a tudo aquilo que o Departamento de Estado norte-americano considera como inimigo. A base da teoria de Granchi, portanto, é o combate dos poderosos contra guerrilheiros, militantes revolucionários e mesmo ativistas sociais.
Em outra parte do texto, a autora cita David Magalhães, coordenador do Observatório da Extrema Direita, para quem “um dos objetivos desses grupos extremistas é fazer oposição às ideologias dominantes“. Ele ainda afirma que “temos um conjunto de ideias apoiadas por uma maioria e sustentadas em pilares liberais, como política parlamentar, tripartição de poder, respeito pelos direitos das minorias e a definição do papel do estado na economia. Grupos extremistas, sejam de direita ou de esquerda, buscarão desafiar essas bases no espectro ideológico“.
Giulia Granchi não poderia ser mais clara. O grande problema da “polinização cruzada”, para ela, não seria a incoerência, mas sim o fato de que as pessoas e organizações que a “praticam” seriam “antissistema”. Seriam, portanto, contra a indústria farmacêutica, contra os grandes monopólios de comunicação, contra a ditadura do Judiciário, contra as arbitrariedades da polícia etc.
A tal “polinização cruzada” é, no final das contas, uma tentativa de substituir bases concretas para analisar a posição política de um grupo ou de uma organização para estabelecer bases abstratas, que forneça ao imperialismo um pretexto para perseguir tudo aquilo que considera subversivo. Para os trabalhadores e oprimidos de todo o mundo, a análise mais importante a ser feita é: o que tal grupo ou tal pessoa defende está alinhado aos interesses do imperialismo, ou está em contradição com ele? Tal grupo ou tal pessoa pode ser considerado um aliado na luta contra o nosso maior inimigo, ou deve ser considerado um colaborador deste?
Para os defensores da “polinização cruzada”, por sua vez, o mundo estaria dividido não entre um exército de oprimidos e um exército de opressores, mas entre os que defendem as “ideologias dominantes” e os que as contestam. E os que as contestam, no que depender de pessoas como Giulia Granchi, poderão ir parar na cadeia.
“Esse extremismo composto, inclusive, foi notado nas evidências de investigações dos criminosos que cometeram alguns ataques a escolas no Brasil”, afirma uma pesquisadora citada no artigo.
A “polinização cruzada”, no final das contas, é uma calúnia contra aqueles que não aceitam serem subjugados pelos donos do mundo e, como sempre, mais uma tentativa de estabelecer mecanismos para reprimir a oposição aos crimes do imperialismo.



