Nessa quinta-feira (21), em meio ao debate sobre os casos Robinho e Daniel Alves, o sítio da Revista Movimento, ligado à corrente do PSOL MES (Movimento Esquerda Socialista), publicou coluna chamada A liberdade que o dinheiro pode comprar, assinada por Tatiana Py Dutra, cuja tese central é denunciar o direito à fiança concedido a Daniel Alves.
Impressiona no artigo o tom repressivo, que poderia muito bem estar numa página bolsonarista daquelas que dizem que “bandido bom é bandido morto”:
“Esse fato [a fiança] reforça em nosso íntimo a impressão de que o dinheiro compra tudo. Até a Justiça, que se queria cega, mas que em vez dos nove anos de prisão pedidos pelo Ministério Público Espanhol e dos 12 que a defesa da vítima solicitava, condenou Daniel Alves a apenas quatro anos e seis meses de prisão.”
O lugar-comum de que o “dinheiro compra tudo” não é errado. Realmente, os ricos são privilegiados e podem safar-se de muitas coisas. Essa crítica, porém, não cabe nesse caso. O que está em jogo aqui não é a quantidade de dinheiro ou se Daniel Alves é rico, o debate aqui é sobre o direito de fiança. Devemos ficar contra esse direito?
Estranho alguém que se diz de esquerda responder positivamente à pergunta anterior. Qualquer direito, por mais distante que seja do povo, deve ser defendido porque ele é um direito do povo. A colocação de que o “dinheiro compra tudo” serve para desviar a discussão central: devemos acabar com o direito à fiança?
Se Daniel Alves é um milionário que teve condições de pagar esse valor para ser solto, o correto não é eliminar esse direito, mas lutar para que ele se torne acessível ao povo. Por exemplo, para um trabalhador preso, mesmo que tenha de fato cometido um crime, poder pagar fiança e sair do inferno da prisão é um direito importante. Essa fiança poderia e deveria estar de acordo com o poder aquisitivo de cada um.
O que não dá é a esquerda se colocar contra um direito democrático.
O pretexto da defesa da mulher é apenas um pretexto. Se o criminoso não tem direito a nada, estamos estabelecendo que, na sociedade, a solução é a repressão pura e simples dos “maus indivíduos”. É a adoção da ideologia bolsonarista sobre o crime.
Mais bolsonarista ainda é uma pessoa de esquerda reclamar que a Justiça espanhola deu “apenas” nove anos de cadeia para Daniel Alves. A esquerda mudou sua ideologia? Agora o correto é defender a repressão, punição exemplar, cadeia etc. como solução para os crimes?
“Juntando-se os fatos e as decisões da Justiça, compreende-se que Daniel saiu vencedor desse jogo contra a dignidade que uma mulher queria ver recuperada. Resultado presumível, apesar de aberrante, de uma sociedade patriarcal que protege os homens e seu capital usando as ferramentas disponíveis, seja o Estado, a polícia ou o próprio sistema jurídico.”
Mais um papo furado pseudo esquerdista para esconder o conteúdo bolsonarista da afirmação. A “sociedade patriarcal”, que nós revolucionários chamamos de capitalismo, também enche de pobres e negros as cadeias em todos os países do mundo. Ela pune, reprime, prende, tortura. Essa é a Justiça do capitalismo.
No meio dessa linguagem pseudo esquerdista de “patriarcado”, o que a matéria quer é que essa mesma sociedade puna com mão de ferro o cidadão. Alguma diferença em relação ao que prega a extrema direita?
Além disso, fica a pergunta: que “dignidade” a vítima recuperaria com uma punição exemplar de Daniel Alves? Acaso ela deixaria de ser uma pessoa estuprada se o jogador estivesse preso? Qual seria a medida para isso?
“E ainda que não tenhamos passado pela experiência de horror que ela passou, podemos compartilhar com ela o desalento com a decisão da Justiça espanhola de conceder ao criminoso condenado o direito de recorrer da sentença em liberdade sob pagamento de uma fiança de 1 milhão de euros (R$ 5,4 milhões).”
Afirmações como essas se assemelham à extrema direita em programas como o de Datena. A vítima do crime diz: “quero Justiça!”, como se uma severa punição ou a repressão mais dura fosse trazer um familiar assassinado de volta. Para a vítima, dominada pela inconsciência do medo e da situação revoltante a que foi submetida, é compreensível esse tipo de comentário. O que espanta é ele aparecer num artigo de um sítio que inclusive se diz trotskista, que deveria ponderar racionalmente os acontecimentos, explicar, educar.
E depois dessa verdadeira lição de bolsonarismo, a matéria afirma: “caberá sempre a nós, mulheres, defendermos umas as outras. E ir as ruas, e lutarmos por leis mais rigorosas, e reivindicar nossos direitos, e educar as futuras gerações“. A depender da política apresentada na matéria, e que a esquerda tem defendido juntamente com os jornais capitalistas, essa mobilização nas ruas pode se dar junto com os bolsonaristas, é a mesma reivindicação.
Defesa dos direitos da mulher passou muito longe do texto em questão. Pedir leis mais rigorosas para Estado “patriarcal” capitalista não é lutar por direito das mulheres, é dar um cheque em branco contra o direito de toda a população.