Na última sexta-feira, dia 29 de março, a Folha de S.Paulo publicou uma coluna assinada por Aldo Fornazieri, um articulista ligado à esquerda nacional, intitulada “Lula acerta ao vetar atos em memória dos 60 anos do golpe? SIM”. Segundo ele,
“o presidente Lula acertou ao vetar eventos de repúdio ou de apoio aos 60 anos do golpe militar no âmbito do governo federal. Um presidente da República deve se conduzir no mais alto grau pela ética da responsabilidade. Como o mais importante magistrado, ele preside todo o povo. Deve ser o ponto de convergência da unidade nacional e agir para que ela se efetue ao máximo possível, dados os conflitos diversos inerentes à sociedade” (grifos nossos).
Ora, se foram vetados eventos de repúdio e de apoio à ditadura militar, por óbvio, o que está colocado são duas posições diametralmente opostas, e não superficialmente, mas profundamente opostas. Frente a isso, para Fornazieri, cabe ao presidente, eleito diante inclusive da disputa entre essas duas políticas, que englobam as posições a respeito do golpe de 1964, simplesmente ignorar tal contradição. Em outras palavras, o que é descrito por Fornazieri de maneira farsesca como responsabilidade é, na realidade, omissão. Pior que isso, é uma posição que enfraquece a posição do mandatário, ou seja, é um suicídio político.
As eleições não ocorrem como uma grande festa de união nacional, mas como um momento de polarização, de choque entre diferentes políticas. Os eleitos devem, portanto, representar os interesses daqueles que os elegeram, ou seja, da maioria.
Não fazê-lo não é um ato de “responsabilidade”, jamais poderia ser caracterizado dessa maneira. O que ocorre por parte do autor, tal qual do veículo no qual Fornazieri publica sua coluna, é um apoio ao golpe militar de 1964, e à possibilidade de repetição do feito nos dias de hoje.
O chamado à unidade nacional é um chamado que se dá não a favor de algum tipo de conciliação entre os que apoiam ou não a ditadura, algo impossível. Fato é que Lula, caso se pronunciasse, o faria em oposição completa à ditadura e a seus filhotes ainda hoje presentes nas instituições nacionais. O chamado à unidade, portanto, é um chamado ao silêncio de Lula, como explicitamente coloca o colunista, o silêncio do presidente e, assim, também de seus eleitores.
Frente ao inimigo, abaixar as armas?
Fornazieri então busca justificar o absurdo de sua posição com uma breve análise. Vamos a ela:
“O país ainda está enredado com a fracassada tentativa de golpe e com o alto grau de polarização política. Do ponto de vista do governo, a responsabilidade impõe duas tarefas: 1 – deslocar grupos polarizados para um campo despolarizado (aqui entram militares, evangélicos etc.); e 2 – fechar as portas para o pronunciamento político da caserna, orientando-a para as missões profissionais e constitucionais.”
Não houve a tal tentativa de golpe. Mas havendo ou não, é fato que a polarização política é alta e que o governo está em uma posição de fraqueza, ameaçado. O que nos leva ao ponto um apresentado pelo articulista: não há como deslocar os “grupos polarizados para um campo despolarizado”, porque não existe esse campo despolarizado. A polarização não é um fenômeno artificial, mas fruto do acirramento da luta de classes, das contradições inerentes à sociedade de classes. Ou seja, um fenômeno baseado em interesses materiais. Assim, não há alternativa, ou os interesses de um dos polos avançam e triunfam sobre os outros, ou a polarização se acirra. A tentativa de distensão da situação se configura numa capitulação, no avanço dos interesses do outro lado, da burguesia.
A posição de Lula de não realizar eventos em condenação e memória do golpe de 1964 expressam essa capitulação. Com ela, o presidente perde força, sua base se desmobiliza, e a extrema direita vê, nessa fraqueza, um flanco aberto, uma frente desimpedida por onde avançar. A alternativa do silêncio, defendida por Fornazieri, nada mais é que isso. Uma capitulação total, e um erro político muito grave. O que nos leva ao ponto dois.
O colunista da Folha fala em “fechar as portas para o pronunciamento político da caserna”. Ora, quem irá garanti-lo? A “caserna” possui os tanques, os fuzis, os soldados. Quem irá “fechar as portas” frente a tal efetivo? Certamente que não uma medida burocrática, administrativa, que por si não tem qualquer validade.
O único meio de fechar as portas para a voz dos generais na política nacional é uma mobilização das amplas massas que concretamente avance e, com esse avanço, impeça as condições para qualquer reação política da direita e de seus generais. A desmobilização, a não realização de atos por parte de Lula, é o contrário, é o desmantelamento de qualquer possível ofensiva dos trabalhadores, ou reação deles à ofensiva da direita. É um recuo, uma medida de fraqueza, que aprofunda essa fraqueza e que, logo, amplia as possibilidades de uma intervenção militar no regime político brasileiro. Fornazieri expõe e defende uma farsa.
Um presidente, um burocrata?
Aldo Fornazieri, então, dobra a aposta, e passa a acusar os que defendem a ação de Lula:
“A tarefa de promover debates e atos de repúdio ao golpe é da sociedade civil, dos movimentos sociais e dos partidos políticos. Aos que criticam a decisão do presidente, a impressão que fica é que as esquerdas querem terceirizar os protestos contra o golpe para o governo. Dizer que a decisão esvazia os atos contra os 60 anos do levante militar é um atestado de fraqueza e de imobilismo dos partidos. É o mesmo que fazem em relação à democracia e ao combate ao golpismo bolsonarista: terceirizaram essa tarefa ao Supremo Tribunal Federal” (grifo nosso).
Quanto à sua primeira frase, basta verificar: Lula é uma liderança histórica do maior partido do Brasil, o Partido dos Trabalhadores, fundado em meio à luta que levou à derrubada do regime militar. Então coloca que a luta contra um golpe, dirigido contra o governo, ou seja, contra Lula, não seria do próprio Lula!
O colunista ainda sugere que a consideração de que as manifestações, sem a presença e o apoio de Lula — maior liderança popular do País, surgido da luta histórica contra a ditadura militar — seriam um atestado de fraqueza da esquerda. Ora, o que seria a não participação da maior liderança da esquerda em tais mobilizações? Um atestado de força?
A última frase, apesar de correta, está fora de lugar. É fato que boa parte da esquerda se exime de qualquer atitude e se coloca numa posição de torcida do STF, o que é um grave erro político. Não é, contudo, desculpa para cometer outro. Continua o articulista da Folha:
“As esquerdas perderam a capacidade de mobilizar e de sustentar atividade política forte no enfrentamento da extrema direita. Confundem o papel do governo federal com os dos partidos políticos.”
Uma farsa. O problema é justamente que, tal qual um setor da esquerda se recusa a mobilizar e se cola às barras do STF, Lula se exime de mobilizar contra o golpismo militar. São o mesmo erro político, a não mobilização, e seu resultado é óbvio. Fornazieri toma a política levada a cabo por seu resultado, invertendo os papéis. Ora, é óbvio que, caso a política de amplos setores da esquerda seja o imobilismo, que ela não irá mobilizar, o que, porém, não é um atestado de incapacidade, mas do erro político que cometem tais setores.
O colunista da Folha conclui sua peça com demagogia, afirmando que Lula precisaria dizer que “defende a democracia” entre outras fraudes performáticas. Face ao cenário que está dado, tanto Lula como o conjunto da esquerda não têm alternativa, devem se lançar à mobilização, ou correm o risco de ser superados pela mobilização que se prepara pelo outro lado.