No dia 27 de dezembro de 2023, logo após a terceira manifestação contra seu governo, Javier Milei enviou ao Congresso da Nação Argentina o “Projeto de Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos”, mais conhecido como “Lei Ônibus”.
Caso Milei consiga a aprovação dessa lei, ele irá transformar o regime político da Argentina em uma ditadura de tipo fascista – isto é, aquela que suprime quase que por completo a vida política de um país. E isto não é modo de dizer.
Segundo o revolucionário bolchevique Leon Trótski, quem, junto de Vladimir Lênin, liderou da Revolução de Outubro, o fascismo corresponde à completa destruição da “Democracia Operária (Proletária)”. Disse ele:
“A fascistização do Estado significa não apenas mussolinizar as formas e os processos de direção – neste domínio as mudanças desempenham, no fim de contas, um papel secundário –, mas, antes de tudo e, sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do regime fascista.
[…]
Durante muitas décadas, no interior da democracia burguesa, servindo-se dela e lutando contra ela, os operários edificaram as suas fortificações, as suas bases, os seus núcleos de democracia proletária: sindicatos, partidos, clubes de educação, organizações esportivas, cooperativas etc. O proletariado pode chegar ao poder, não nos quadros formais da democracia burguesa, mas somente por via revolucionária. Isto é demonstrado ao mesmo tempo pela teoria e pela experiência. Mas é, precisamente, para a via revolucionária que o proletariado tem necessidade das bases de apoio da democracia operária no interior do Estado burguês. Foi na criação de tais bases que se manifestou o trabalho da II Internacional, na época em que ela realizava ainda um trabalho historicamente progressivo.
[…]
O fascismo tem como função essencial e única a destruição, até os alicerces, de todas as instituições da democracia proletária.”
Dito isto, passemos à análise da Lei Ônibus. Mais especificamente, a “Sección I – Organización de las Manifestaciones”, do “CAPITULO I – SEGURIDAD INTERIOR”. Embora o título da seção seja “Organização das Manifestações”, o primeiro artigo modifica o código penal para incluir novos crimes contra manifestantes. Então, o nome deveria ser “Da Proibição do Direito de Manifestação”. Vejamos os artigos:
“CAPÍTULO I – SEGURANÇA INTERNA
Seção I – Organização das Manifestações
ARTIGO 326 – Modificação do Código Penal da Nação. Substitui-se o artigo 194 do Código Penal da Nação pelo seguinte:
“ARTIGO 194 – Aquele que, sem criar uma situação de perigo comum, impedir, obstruir ou dificultar o funcionamento normal dos transportes por terra, água ou ar, ou dos serviços públicos de comunicação, de fornecimento de água, eletricidade ou substâncias energéticas, será reprimido com prisão de um (1) a três (3) anos e seis (6) meses.
Vejam bem: é crime simplesmente obstruir o funcionamento normal de transportes e serviços. Ou seja, é proibido qualquer tipo de manifestações nas ruas e, principalmente, serão proibidas greves operárias. Afinal, greves impedem o funcionamento de serviços de transporte, fornecimento de água etc.
O que é isto senão um ataque às formas de luta da classe operária contra a burguesia? Se é isto, então é um ataque à democracia operária. Logo, é uma lei de conteúdo fascista.
O artigo prossegue impondo penas mais pesadas àqueles que portarem armas:
“Se impedir, obstruir ou dificultar a circulação ou os meios de transporte público portando uma arma própria ou imprópria, causar dano à integridade física das pessoas, a pena será de dois (2) a quatro (4) anos de prisão, desde que não constitua um crime mais gravemente punido”.
Ora, o direito ao armamento é um democrático da população, direito este que foi conquistado durante a época das revoluções burguesas, na luta que a burguesia, liderando as massas populares, travou contra a ordem feudal e a monarquia absoluta. Vale lembrar dos ensinamento de Lênin, de que a única garantida de democracia é o fuzil ao ombro do trabalhador.
Adiante, o projeto de lei dispõe sobre os dirigentes, organizadores e coordenadores das reuniões e manifestações, dizendo que serão punidos com prisão de dois a cinco anos, mesmo que não estejam presentes nos protestos:
“Aqueles que dirigirem, organizarem ou coordenarem uma reunião ou manifestação que impedir, obstruir ou dificultar a circulação ou transporte público ou privado, ou que causar lesões às pessoas ou danos à propriedade, serão reprimidos com prisão de dois a cinco anos, estejam ou não presentes na manifestação ou acampamento.”
Milei também que propõe pena de prisão ou reclusão de três (3) a seis (6) anos àqueles que, por meio de intimidação, simulando autoridade pública ou falsa ordem da autoridade, sob promessa de remuneração ou sob ameaça de retirada ou concessão de um benefício, plano, subsídio de qualquer natureza, “obriguem outro a assistir, permanecer ou afastar-se de uma mobilização ou protesto.”
O artigo 327 fornece um conceito tão amplo e vago que qualquer um pode ser considerado um “organizador” da manifestação. E, com isto, pode ser punido com base na nova Lei. Vejamos:
ARTIGO 327 – Organizadores. – Incorpora-se como artigo 194 bis ao Código Penal, o seguinte:
“ARTIGO 194 bis – Entender-se-á por organizador ou coordenação de uma reunião ou manifestação, para os efeitos do artigo anterior, toda pessoa física, pessoa jurídica, reconhecida ou não, ou conjunto delas que:
- convoca outras pessoas para participar da reunião;
- coordena pessoas para realizar a reunião;
- fornece qualquer tipo de meio material ou logístico para a realização da reunião;
- faz a chamada, registra as presenças ou as ausências por qualquer meio escrito ou de gravação de imagens.
A responsabilidade a que se refere este artigo será independente da presença ou não dos organizadores ou coordenadores na reunião ou manifestação.”
Como pode ser lido acima, se você simplesmente ligar para uma pessoa, ou mandar uma mensagem, chamando-a para ir a uma manifestação, você poderá ser considerado seu “organizador”. E pode pegar até 5 anos de prisão.
Se você fornecer carona para pessoas que vão à manifestação (meio logístico para a realização), você vira “organizador”. Pode ser preso.
Isto é, na prática, uma proibição do direito de manifestação do povo argentino. Um direito democrático fundamental.
É, igualmente, uma proibição que as organizações populares e dos trabalhadores se organizem para lutar contra a ofensiva golpista do imperialismo, e o saque que irá realizar da riqueza produzida pela classe trabalhadora argentina. É, então, um profundo ataque contra a democracia operária. Assim, é mais uma demonstração que a Lei Ônibus tem natureza fascista.
ARTIGO 328 – Os organizadores das reuniões ou manifestações serão solidariamente responsáveis pelos danos que os manifestantes causarem a terceiros ou a bens de domínio público ou privado, em razão da reunião ou manifestação. A responsabilidade solidária estabelecida neste artigo não os isenta das responsabilidades decorrentes de possíveis ações que possam ocorrer, nem das multas estabelecidas nesta Seção.
Novamente, um ataque tanto ao direito de manifestação, como à democracia operária. Afinal, responsabiliza os organizadores das manifestações, que muitas vezes chegam a ter milhares de pessoas por ações sobre as quais eles não têm absolutamente nenhum controle. Como que um organizador de de uma manifestação vai impedir, por exemplo, um manifestante que ele sequer conhece, e que não faz parte de sua organização, de agredir um agente da repressão?
Continuemos.
ARTIGO 329 – Descumprimento dos organizadores. Os organizadores, coordenadores ou aqueles que atuem como tais e que descumprirem ou fizerem descumprir pelos manifestantes, conforme disposto nesta Seção, no que se refere à afetação da circulação, do transporte público ou à presença de menores sem a devida companhia, estarão sujeitos à multa máxima prevista no artigo 77 e regulamentada no artigo 84 da Lei nº 24.449, correspondente à cifra de vinte mil (20.000) unidades fixas (UF).
Basicamente, um artigo estabelecendo penas mais duras para os crimes listados acima (e os outros do Código Penal que sejam aplicáveis às manifestações).
ARTIGO 330 – Modificação da Lei Nacional de Trânsito. Incorpora-se como inciso z) ao artigo 48, Título VI, Capítulo I, Regras Gerais da Lei Nº 24.449, o seguinte:
“inciso z) Impedir ou obstruir totalmente o tráfego em ruas ou avenidas, rodovias nacionais e pontes interjurisdicionais por meio de uma mobilização ou protesto social.”
Esse artigo, aplicando-se especificamente ao código de trânsito argentino, é um reforço para proibir a realização de manifestações nas ruas. Novamente, uma violação ao direito democrático de manifestação.
ARTIGO 331 – Reunião ou manifestação. Para os fins deste Capítulo da lei, entende-se por “reunião” ou “manifestação” a congregação intencional e temporária de três (3) ou mais pessoas em um espaço público com o propósito do exercício dos direitos mencionados na presente lei.
Aqui, chega-se ao cúmulo do absurdo. Se três ou mais pessoas estiverem juntas e manifestarem algum tipo de posição política, isto será considerado “manifestação” para fins dos crimes que a Lei Ônibus estabelece. Ou seja, novamente essa lei proíbe o direito de manifestação. Afinal, três pessoas já podem ser encarceradas como subversivas da ordem que o imperialismo tenta impor à Argentina, através do ditador Javier Milei.
ARTIGO 332 – Proteção de meninas e meninos. Conforme o estabelecido pela Convenção sobre os Direitos da Criança, pela Lei Nº 26.061 e pelo Código Civil e Comercial da Nação, no caso de encontrar-se uma pessoa menor de treze (13) anos de idade sem estar na companhia de seus pais, tutores ou representantes legais, ou se estiver em situação de perigo iminente à sua integridade física, a autoridade pública que constatar tal situação deverá comunicar imediatamente o Organismo de Proteção dos Direitos de Meninas, Meninos e Adolescentes nacional ou correspondente a cada jurisdição.
ARTIGO 333 – Notificação. Toda reunião ou manifestação deverá ser notificada de forma inequívoca ao Ministério da Segurança da Nação, com antecedência não inferior a quarenta e oito (48) horas. Nesta notificação, devem ser detalhadas as características da manifestação, os dados da pessoa física ou jurídica que a organiza, especificando nomes e dados pessoais de seus organizadores, delegados ou autoridades, independentemente de participarem ou não da reunião ou manifestação; o objetivo e finalidade, a localização e percurso, tempo de duração e quantidade estimada de participantes.
A exigência de que os organizadores de manifestações notifiquem o aparato de repressão previamente só serve para que a polícia esteja melhor preparada para reprimir o povo. E, o que é pior: o artigo determina que as características da manifestação devem ser detalhadas, devendo ser fornecidos inclusive os dados das organizações e os nomes dos organizadores e demais lideranças. Isto é, o aparato repressivo quer todas as informações necessárias para que a repressão ao povo lhe seja facilitada.
Isto é claro quando deixa expresso que deverá ser informado “o objetivo, finalidade, localização, percurso, tempo de duração e quantidade estimada de participantes”.
ARTIGO 334 – Manifestação espontânea. No caso de a reunião ou manifestação ser espontânea, a notificação estabelecida no artigo anterior deve ser feita com a maior antecedência possível, respeitando o conteúdo estabelecido no referido artigo.
Como é possível fazer uma notificação prévia de uma manifestação espontânea? É uma impossibilidade lógica. Esse artigo é apenas um pretexto para reprimir os trabalhadores e suas manifestações contra os ataques vindouros do governo golpista de Javier Milei.
ARTIGO 335 – Obrigações e faculdades do Ministério da Segurança. Após receber a notificação estabelecida nos artigos precedentes, o Ministério da Segurança da Nação deverá fornecer um comprovante em que conste sua correta apresentação.
Nesta oportunidade, o Ministério da Segurança da Nação poderá se opor à realização da reunião ou manifestação, fundamentando-se em questões relacionadas à segurança das pessoas ou à segurança nacional. Além disso, também poderá propor modificações tanto de horário, local ou data de realização.
Neste artigo, Javier Milei pretende colocar o direito de manifestação sob o arbítrio do Ministério de Segurança Argentino, ou seja, o órgão máximo do aparato de repressão.
Em outras palavras, pretende inviabilizar o direito de manifestação.
Afinal, se o Ministério de Segurança pode se opor à realização de manifestação, ou propor modificações a ela, há alguma dúvida de que isto será feito? Independentemente de justificativa razoável. Pretextos serão forjados simplesmente para impedir que os trabalhadores e o povo argentino se manifestem contra o golpe de Estado de Milei e a política imperialista de “choque econômico”.




