No dia 27 de agosto, sem grande alarde, a terceira turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, ser “legítimo que um provedor de aplicação de internet, mesmo sem ordem judicial e por iniciativa própria, retire de sua plataforma determinado conteúdo quando este violar a lei ou seus termos de uso”.
A decisão deu-se a respeito do Recurso Especial 2.139.749-SP, cujo recorrente é Paulo Porto de Melo, um neurocirurgião que, durante a pandemia da COVID-19, publicou vídeo em seu canal do YouTube defendendo o uso da hidroxicloroquina no tratamento da doença. O vídeo foi removido pela plataforma norte-americana por violar seus termos de uso. Porto de Melo corretamente alega censura e violação de sua liberdade de expressão.
Segundo o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, relator do caso, o banimento de um vídeo publicado por um brasileiro na rede que é, na prática, um monopólio trata-se de “autorregulação regulada”. Para Villas Bôas, seria “autorregulação ao observar suas próprias diretrizes de uso, regulada pelo Poder Judiciário nos casos de excessos e ilegalidades porventura praticados”. O juiz, naturalmente, não considera esse caso um excesso e acrescenta:
“O art. 19 da Lei n. 12.965/2014 (‘Marco Civil da Internet’) não impede nem proíbe que o próprio provedor retire de sua plataforma o conteúdo que violar a lei ou os seus termos de uso. Essa retirada pode ser reconhecida como uma atividade lícita de compliance interno da empresa, que estará sujeita à responsabilização por eventual retirada indevida que venha a causar prejuízo injustificado ao usuário.”
Em outras palavras, a decisão inverte completamente o devido procedimento legal. No lugar de passar pela justiça para que se aplique a punição (censura), a punição pode ser aplicada e, posteriormente, a justiça pode decidir por considerá-la indevida, revertendo o processo.
É irônico que seja citado o artigo 19o do Marco Civil da Internet que, apesar de não proibir a censura por parte das empresas de tecnologia, deixa claro seu intuito:
“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura [grifo nosso], o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.” Mas muito acima do Direito Penal está a Constituição brasileira, que em seu artigo 5o, inciso IV diz que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A decisão do STJ, numa omissão do Marco Civil da Internet, pende pela violação dos direitos constitucionais do cidadão brasileiro.
Segundo reportagem do jornal Valor Econômico, a advogada do Google recebeu com muita satisfação a decisão. “Respalda a capacidade das plataformas de moderar o conteúdo de acordo com os termos de uso e guidelines de comunidade”, disse Giovanna Ventre. Segundo ela, o artigo 19o seria muito eficiente porque acomoda “alterações periódicas” nos termos de uso. É natural que a empresa elogie o artigo que apenas protege as próprias empresas e não versa sobre os direitos de seus usuários. Através de seus termos de uso, as “big techs”, os grandes monopólios de tecnologia, em sua maioria norte-americanos, efetivamente legislam sobre o que pode e o que não pode ser dito no Brasil.
A decisão do STJ complementa o ambiente repressivo que se tornou a internet brasileira. Com o banimento da rede social X, acrescido da punição em R$50 mil para que usar “subterfúgios tecnológicos” para acessá-la, pesam sobre os internautas brasileiros mais medidas repressivas. Há duas ações que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, que tratam do artigo 19o do Marco Civil da Internet. Não pretendem corrigi-lo em favor dos usuários censurados, mas aprofundar a censura por parte das empresas, estipulando que sejam punidas desde o momento em que um conteúdo “ilícito” tenha sido publicado, não apenas após decisão judicial, como especifica a lei atualmente.
Caso sejam punidas como cúmplices por facilitar “discurso ilegal” em sua plataforma, as big techs passam a ter não apenas seus interesses políticos, mas interesses econômicos, incentivando-as a censurar preventivamente seus usuários. O Projeto de Lei 2630, também conhecido como PL das Fake News, rejeitado pelo Congresso, também previa “regulação” dos monopólios de tecnologia, incentivando-as a censurar previamente sob pena de multas milionárias.