O artigo Flip Paraty coloca João do Rio entre os mais vendidos e não debate racismo nas obras do autor, publicado no sítio Almapreta (22/10) e assinada por Claudia Alexandre, é mais um exemplo de como o identitarismo, uma ideologia impulsionada pelo imperialismo, trata, e julga, quaisquer assuntos sob uma perspectiva moralista.
Para os identitários, a literatura, as artes em geral, precisam passar por uma censura, mas é claro que a coisa não é colocada nesses termos, amenizam essa prática inquisitorial dizendo que é preciso “repensarmos sobre obras que avançaram o passado e deveriam ser questionadas, ou no mínimo, atualizadas no presente”.
João do Rio (1881-1921) foi um dos pseudônimos de João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto. Nasceu sete anos antes da abolição da escravidão, viveu na capital federal, a maior cidade brasileira, na qual, seguramente, se expressavam as maiores contradições sociais.
É prática do identitarismo cobrar de todos, independentemente da época ou local em que vivia, uma postura contra o racismo. A autora diz que João do Rio, “ao mesmo tempo que lançou uma forma arrojada de fazer o jornalismo de campo, adentrando becos, vielas e morros, sem economizar críticas à toda gente preta e pobre, também sofreu preconceitos por representar existências que ele mesmo depreciava”. E lançou a seguinte pérola: “João do Rio era um negro de pele clara, gordo e diziam que escondia sua orientação sexual”.
As referências às características físicas e supostamente sexuais de João do Rio nos leva a quê? Se ele tivesse sido magro, retinto e ‘hétero’, o que mudaria? Os identitários coloristas costumam dizer que os negros de pele clara são menos oprimidos que os retintos, até aí, pode ser verdade. Mas sendo assim, os de pele mais escura deteriam mais autoridade, ou “lugar de fala”, para falar dos problemas dos negros.
Da mesma maneira que se utiliza o ‘negro de pele clara’ para estigmatizar, ou depreciar determinado autor, o contrário também é verdade. Muitos trabalhos são aplaudidos pelo simples fato de terem sido realizados por pessoas de determinada “identidade”. A qualidade, ela mesma, fica em segundo plano e, não raro, não mereceria nenhum aplauso.
Segundo Claudia Alexandre, João do Rio “nunca romanceou sobre o Rio de Janeiro e a sua população majoritariamente negra e mestiça como ele, que nasceu do casamento de mãe negra e pai branco. João era da ala que sonhava com uma modernidade que transformasse a cidade em uma “Paris tropical”, a belle époque carioca, nada africana e bastante europeia. Ele mesmo olhava e descrevia o Rio de Janeiro como um lugar de gente civilizada e incivilizada, sendo que ele era um homem civilizado, logicamente. Os incivilizados era os negros e mestiços, principalmente os “feiticeiros”, “feiticeiras” e frequentadores dos terreiros”.
A autora se esquece que, em todas as épocas, a ideologia que vigora é a da classe dominante. Um exemplo disso são os próprios identitários, que não questionam o modo de produção e as instituições do poder da burguesia. O que eles pregam, é que as minorias oprimidas ocupem “lugares de poder e de mando”. Reivindicam uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal, nas gerências de empresas, mas isso não muda a vida dos negros de um modo geral. No máximo, um ou outro indivíduo é ascende socialmente.
Alguns identitários têm como mentor Marcus Garvey, que criticava o socialismo e pregava um tipo de “capitalismo negro”. Ora, negro, branco ou amarelo, capitalismo é capitalismo. É a exploração de um homem por outro, e essa exploração vai gerar todo tipo de problemas sociais. Ou seremos ingênuos ao ponto de acreditar que a partir da exploração derivaria um mundo justo?
Claudia Alexandre, no entanto, diz que “É um erro pensar João do Rio (ou qualquer outro autor) como um ‘homem de época’ para justificar qualquer passividade diante do passado escravista do nosso país. Passividade era para os fracos, não para ele!”. Ocorre que para João do Rio não se tratava de um “passado escravista”, era o que ele vivia, era seu dia a dia. A Abolição só aconteceu quando ele tinha sete anos e, mesmo assim, não se passou uma borracha sobre a escravidão, que, como todo processo social, leva tempo para se efetivar.
A autora do artigo diz que para João do Rio, “o povo dos terreiros não passava de ‘idiotas’, ‘embusteiros’, ‘gorilas manhosos’, ‘obcecados’, ‘delirantes’, ‘pagãos literatos’, ‘reveladores do futuro’ e ‘amantes do diabo’. O diabo para ele também era Exu. João do Rio não cansou de reforçar essa deturpação e não havia imparcialidade para se referir a toda gente ‘incivilizada’ ”. Mas esse era um senso comum. O Brasil era um país católico, com forte influência da Igreja. Hoje, há pessoas negras claras ou escuras, gordas e magras, que professam o cristianismo e repudiam as religiões africanas. Se é assim agora, por que não teria sido no passado?
Outro dado que Claudia Alexandre levanta é que “apesar de ter sido lembrado na Flip 2024 como o repórter que defendia o direito e emancipação das mulheres, é bom lembrar que ele não deixou de lançar um olhar de reprovação para as mulheres negras dos terreiros. Foram depreciadas em seus livros como feiticeiras, pretas cínicas, histéricas e descritas como postulantes a prostitutas”. Em nenhum momento ela discute a defesa que João do Rio teria feito em defesa da emancipação das mulheres, interessa apenas olhar a questão pela negativa.
Um pouco antes de terminar seu artigo, autora escreve um verdadeiro absurdo. Pergunta: “Será que homens de outros tempos devem mesmo ser lidos pelo seu tempo, no tempo de hoje? Será mesmo que João do Rio jogou a pedra ontem nas religiões afro-brasileiras, acreditando que hoje não nos atingiria, sendo que é o tipo de narrativa do passado que ainda alimenta imaginários que demonizam tradições, espiritualidades e as religiosidades afro-brasileiras no presente?”.
Se é mesmo que João do Rio criticou as religiões afro-brasileiras como diz a autora, ele não “jogou a pedra” lá no passado para nos atingir hoje, isso não faz o menor sentido.
Os identitários têm uma fixação com o passado, talvez para encobrirem o fato de não atuarem efetivamente para melhorar a situação do negro de agora. Hoje, quando as estatísticas mostram que a polícia militar mata cada vez mais, e que a esmagadora maioria das pessoas mortas são negras, os identitários ficam preocupados com “posições de mando”; querem ministérios, presidências, e não o essencial, como exigir o fim da polícia militar.