No Enfrentar o sionismo, a extrema direita e o massacre contra o povo palestino: pela ruptura imediata de todas as relações entre Brasil e Israel, o portal Esquerda Diário, editado pelo Movimento Revolucionário dos Trabalhadores (MRT), apresenta seu balanço da crise instaurada após as declarações do presidente Lula na Etiópia, onde participou da reunião da cúpula da União Africana. Ao comentar a situação na Faixa de Gaza, Lula comparou as ações de “Israel” contra o povo palestino às ações da Alemanha Nazista contra os judeus na Segunda Guerra Mundial, despertando a fúria do sionismo.
O curioso do artigo é que ele dedica toda a sua atenção tão somente à reação da direita à fala de Lula, ignorando por completo a fala em si. Os motivos por trás disso ficarão claros no decorrer do artigo.
Segundo o Esquerda Diário, “a grande mídia brasileira segue embarcada numa histeria pró-sionista, sendo cúmplice direta da barbárie colonialista de Israel, que já assassinou mais de 13 mil crianças“. O que seria a “grande mídia”? São os grandes jornais? São as emissoras de televisão? São as redes sociais? Com tal formulação genérica, o MRT não deixa claro do que se trata. E, assim, acaba por ignorar o caráter de classe do problema.
Quem segue “embarcada numa histeria pró-sionista” é a imprensa burguesa – isto é, os grandes monopólios de comunicação, que são porta-vozes do imperialismo. São, na verdade, órgãos de propaganda norte-americanos operando dentro do Brasil e em língua portuguesa – ou, ao menos, em uma língua parecida com essa. Caracterizar o apoio de veículos como a Globo à “histeria pró-sionista” como um problema de classe será uma questão importante para o futuro da discussão.
Segue, então, o MRT: “essa campanha grotesca da mídia em defesa dos sionistas, cuja política de limpeza étnica e extermínio horroriza o mundo, a alia intimamente com o bolsonarismo e a extrema direita na América Latina (a exemplo de Javier Milei) e no mundo todo“. Aqui, fica claro novamente a incompreensão do Esquerda Diário no que diz respeito ao papel da imprensa burguesa no Brasil. Ao dizer que a “grande mídia” se alia ao bolsonarismo e à extrema direita, entende-se que a política de limpeza étnica é uma política da extrema direita, para a qual a “grande mídia” estaria sendo atraída. O MRT está, portanto, acusando a “grande mídia” de fazer de sua política a política da extrema direita.
Trata-se, no entanto, do exato oposto. O bolsonarismo e a extrema direita não inventaram o sionismo ou a limpeza étnica. O bolsonarismo defende “Israel” justamente porque o imperialismo o defende. De um ponto de vista puramente ideológico, seria até mesmo contraditório o bolsonarismo, cujos adeptos simpatizam com o nazismo, defender um Estado que se diz “judeu”. O apoio do bolsonarismo a “Israel” só acontece porque o bolsonarismo é um movimento impulsionado e sustentado pela burguesia imperialista – e, como tal, tem a defesa de “Israel” como parte de seu programa. O mesmo acontece em relação aos Estados Unidos: ainda que o bolsonarismo faça muita demagogia “patriótica”, a extrema direita brasileira não consegue ter força se não tiver apoio do imperialismo. Por isso, Bolsonaro é um lambe-botas dos norte-americanos, como deixou claro ao bater continência para Donald Trump.
É o bolsonarismo e a extrema direita, portanto, que se aliam à grande imprensa – isto é, ao imperialismo. E o importante disso é que desmascara os ditos “antiglobalistas” como aliados do maior sistema de opressão da face da Terra. O imperialismo, responsável por mais de um milhão de mortos na Guerra do Iraque, pelas bombas de Hiroxima e Nagasaqui, pelos golpes de Estado na América Latina e, claro, pela destruição na Faixa de Gaza. Recentemente, os Estados Unidos destinaram quase meio trilhão de reais para os regimes fascistas da Ucrânia e de “Israel”. Dito de outra forma: não haveria sionismo, se não houvesse o apoio do imperialismo.
Depois dessas considerações que demonstram sua total incompreensão do que é o imperialismo e de como ele opera no Brasil por meio da imprensa, o MRT chega, finalmente, ao caso do presidente Lula. Diz o Esquerda Diário:
“É por isso que a recente entrevista de Lula na Etiópia, com críticas ao massacre na Palestina, gerou uma ampla reação desses setores, que chegam ao absurdo de acusá-lo de antissemitismo, o que revela o nível de alinhamento de diversos setores com as ações colonialistas das principais potências imperialistas, apoiando com (sic) o massacre sionista em curso.”
Ainda que mal escrito, é possível entender a argumentação feita pelo MRT. O “por isso” se refere à explicação anterior sobre a”grande mídia”. Temos, portanto, que: por seguir “embarcada numa histeria pró-sionista”, a “grande mídia” teria reagido de maneira negativa em relação às declarações de Lula. Ora, quem “embarcou”, pode “desembarcar”. A posição da imprensa burguesa não seria uma posição de classe, mas meramente obra do acaso. Da forma como o MRT coloca o problema, parece que tudo não passou de uma escolha. Se a tal “grande mídia” não tivesse sido atraída pela extrema direita, ela hoje estaria defendendo o presidente Lula!
Não, eles se voltam contra Lula porque eles não representam nenhum interesse nacional. Eles são tão somente os representantes da mesma força social que promove a guerra, o imperialismo.
O Esquerda Diário segue, então: “no Brasil, a extrema direita sionista está articulando um pedido de impeachment de Lula devido a declaração sobre o genocídio do povo palestino. A extrema direita se apoia nos mecanismos autoritários do regime político para demarcar sua posição reacionária e seu acordo com a barbárie promovida pelo Estado sionista, cujas vítimas prioritárias são mulheres e crianças. É necessário rechaçar fortemente esse pedido de impeachment, ainda que não haja, no momento, correlação de forças políticas para que avance“.
Também é uma posição bastante curiosa. A grande motivação da extrema direita seria, portanto, “demarcar sua posição reacionária”. O pedido de impeachment seria, assim, algo exclusivamente de interesse daquele setor – algo que estaria completamente isolado da cobertura da “grande mídia”.
O fato é que, independente do interesse da extrema direita em “demarcar sua posição”, o pedido de impeachment é uma forma de intimidar o presidente da República. É uma forma de pressioná-lo para que volte atrás em suas colocações. Nesse sentido, não é uma medida descolada do assédio da grande imprensa, é uma medida que se soma a uma ofensiva de conjunto contra o governo. A extrema direita não age aqui de maneira independente do imperialismo, mas sim em frente única cujo objetivo é fazer Lula se curvar à Casa Branca.
Mas o mais interessante disso tudo é que essas duas colocações encerram tudo o que o MRT tem a dizer sobre o conflito entre Lula e o imperialismo – ou, para o MRT, os conflitos entre Lula e a “grande mídia” e entre Lula e os bolsonaristas que querem “demarcar sua posição”. No final das contas, concluímos que a “grande mídia”, sabe-se lá por que, “embarcou” na campanha da extrema direita, que a extrema direita, também sabe-se lá por que, defende a limpeza étnica, e que ambos saíram ao ataque porque, ainda que não se saiba por que defendem “Israel”, eles estariam comprometidos a fazê-lo. Ainda que não explique nada, o MRT teria uma teoria de por que há uma reação às declarações de Lula. Isto é, o Esquerda Diário apresenta um motivo para que haja a ofensiva.
Mas e que motivos levaram Lula a se confrontar com “Israel”? Nenhuma palavra sobre isso. O que é, obviamente, muito esquisito. Se há toda essa engrenagem montada para defender “Israel” a cada oportunidade que aparece, por qual razão iria Lula querer fornecer um motivo para ser retaliado?
É aqui que a incompreensão do MRT sobre o imperialismo se torna ainda mais comprometedora. Se o Esquerda Diário levasse em consideração que o imperialismo é o elemento ativo em toda a crise, a resposta seria fácil: Lula reagiu porque é uma pessoa que está em contradição com o imperialismo. Lula decidiu enfrentar o Estado de “Israel” porque está colocado em uma situação de confronto com as mesmas forças que sustentam “Israel”. Lula, na condição de presidente popular de um país atrasado, que não para de se desindustrializar desde 1985 por culpa do imperialismo, cuja vida política sofre ingerência a todo momento por culpa do imperialismo, cujas riquezas são todas saqueadas pelo imperialismo, apresenta uma tendência ao choque com os países que dominam a ordem mundial.
Como, para o MRT, o imperialismo é uma abstração – uma entidade tão fraca que sequer seria capaz de controlar a imprensa brasileira -, a posição de Lula nada teria a ver com a luta contra o imperialismo. Ela poderia ter sido expressa por qualquer pessoa, até mesmo por Joe Biden. Sionistas, imperialistas e bolsonaristas, portanto, estariam reagindo a meras palavras, e não a uma tendência do Brasil a romper com a ditadura imperialista e, pior ainda, a arrastar uma série de países sul-americanos e africanos para essa mesma posição.
Em 1913, o matemático Émile Borel estabeleceu o Teorema do Macaco Infinito, segundo o qual um macaco colocado à frente de uma máquina de escrever, digitando aleatoriamente em um teclado por um intervalo de tempo infinito, seria capaz de escrever uma obra de William Shakespeare. Seguindo a mesma ideia, colocássemos um chimpanzé à frente de uma máquina de escrever, em algum momento ele escreveria a mesma coisa que Lula disse, e o resultado, segundo o MRT, seria o mesmo. Afinal, o que importa, neste caso, são as palavras e a reação da direita a elas, e não a posição do presidente brasileiro.
As loucuras do MRT, contudo, não param por aí. Incapaz de perceber que o confronto entre Lula e “Israel” se insere na luta de classes mundial, o Esquerda Diário ainda consegue utilizar as retaliações contra o presidente brasileiro para criticar o governo brasileiro! Diz o MRT:
“Após a repercussão internacional, e apesar do chamado ao embaixador brasileiro em Tel-Aviv, a contradição colocada é que o governo Lula mantém até agora todas as relações econômicas, militares e diplomáticas com o Estado sionista, com o Brasil tendo exportado US$ 662 milhões para Israel em 2023. Seu governo mantém vigentes inclusive acordos de colaboração em ‘segurança’ firmados ainda pelo governo Bolsonaro; a Petrobras lucra com a máquina de guerra de Israel, como denunciamos no Esquerda Diário, assim como também é parte de garantir que as armas e a tecnologia militar de Israel sejam parte do que mata e reprime sobretudo a juventude negra nas favelas e periferias com as balas da polícia.”
Dizer que o governo “mantém” todas as relações já é, em si, uma mentira. O governo Lula acabou de convocar o embaixador brasileiro em “Israel” e foi rotulado como persona non grata pelo governo israelense. Não há como considerar isso como uma relação diplomática “normal”. Em certo sentido, ela está suspensa. Ao mesmo tempo, um artigo publicado na Folha de S.Paulo nesta semana afirmou que a crise instaurada após a fala de Lula deve “enterrar por definitivo” um acordo entre o Brasil e “Israel” no Senado Federal, que vinha sendo discutido desde o governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019.
O Brasil ainda conserva relações com “Israel”, e é de fato necessário rompê-las. No entanto, não há como negar que as condições para essa ruptura nunca estiveram tão favoráveis como após o cenário estabelecido, em grande medida, pelas declarações do presidente.
O fato é que, para que as relações entre Brasil e “Israel” se rompam, só há dois caminhos possíveis: ou consideramos que o governo Lula está em contradição com o imperialismo – neste caso, seria preciso aumentar a polarização, empurrando o governo Lula para a esquerda por meio da mobilização dos trabalhadores -; ou consideramos que o governo Lula é um obstáculo a esse rompimento – e, portanto, o rompimento só seria possível caso fosse derrubado. Se o MRT ignora por completo as contradições entre Lula e o imperialismo, também ignora, portanto, que há uma tendência à ruptura e que essa tendência pode evoluir, caso a polarização aumente. Implicitamente, o MRT está apresentando a derrubada do governo como única saída para o rompimento.