Abertas as urnas, a ministra Cármen Lúcia, do STF, que foi escolhida presidente do TSE em 2024, lamentou não ter havido mais mulheres eleitas nas cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, um levantamento publicado na imprensa burguesa revelou que quatro em cada cinco das que se elegeram, ou 80%, são de direita. Quem pensou que a introdução das “cotas de gênero”, que obrigam os partidos a apresentar, no mínimo, 30% de candidaturas femininas, fosse uma política progressista, a esta altura, deve estar decepcionado.
O caminho natural para se tornar uma candidata é militar em um partido político, participar das atividades partidárias no dia a dia. Rigorosamente, não seria necessário que um tribunal fizesse exigência de número de mulheres no pleito, submetendo partidos a algum tipo de punição em caso de descumprimento da regra, como ocorre hoje. Esse tipo de norma, a despeito de ser uma ingerência nos partidos, provoca distorções.
O alegado motivo da resolução seria fazer a mulher avançar na conquista de espaços, o que, dito dessa maneira, parece uma medida progressista. O problema é que “ser mulher” não é o mesmo que “ser progressista”, daí o paradoxo. A coisa se repete com gays e transexuais, porque orientação sexual não faz da pessoa “progressista”. Aliás, os candidatos LGBTQIAPN+, em geral, são adeptos do identitarismo, que é um braço da política neoliberal.
Não há como negar que o resultado da eleição mostrou o avanço da direita no país; na esquerda pequeno-burguesa, as análises oscilam entre a recusa a enxergar isso e a queixa de que o povo é reacionário, conservador, fascista… Talvez a ausência de uma esquerda realmente de esquerda, que não seja tributária de modismos norte-americanos do tipo “cultura woke”, esteja pavimentando o caminho da direita.
A principal contribuição do identitarismo, uma política da direita “civilizada” que capturou a esquerda pequeno-burguesa, é justamente o fortalecimento da extrema direita. De certa forma, o fenômeno Pablo Marçal reflete isso. Ao dizer que todos os outros candidatos eram “comunistas”, de algum modo, ele estava denunciando a homogeneidade entre eles, todos identitários e defensores das instituições democráticas etc. etc. etc. Tirante o uso do termo “comunista”, a percepção dele não é descabida.
A principal característica da política identitária não é a defesa das minorias, como se propagandeia, mas, sim, o elogio da punição. Tudo vira lei, tudo gera punição ou, no mínimo, “cancelamento” destruição de reputação, perda de emprego ou de contratos etc. A sociedade passa a viver numa espécie de colégio interno, e todos podem ser os algozes de todos. Basta se sentir ofendido com alguma coisa.
É sintomática a declaração de um jurista conhecido na esquerda, frequentador do Portal 247, de que, como a Justiça (o Judiciário) tem limites, é preciso mobilizar a sociedade para cobrar das empresas de internet que proíbam pessoas de falar. A conversa girava em torno de Pablo Marçal pouco antes da eleição. As leis têm de ser feitas e votadas pelos parlamentares eleitos, mas as “leis” da internet podem ser feitas pelas empresas. E o jurista convoca a população a se engajar nesse projeto.
Não, não é de estranhar. Afinal, se um ministro do STF, incensado pela esquerda, moveu ação contra um apresentador de podcast que o chamou de “gordola”, e uma juíza lhe deu ganho de causa, condenando o rapaz à prisão e ao pagamento de multa de R$ 50 mil, é sinal de que a “esquerda” já está muito próxima da direita. A juíza, em sua sentença, lembrou que o rapaz chamou o ministro de “seu merda” ou “seu bosta” e que a associação com excremento era escatológica, portanto manchava a honra do referido membro da corte suprema. Caso ela não saiba, essas expressões são populares, ouvidas todos os dias, inclusive nas novelas da Rede Globo, que, a bem da verdade, é escatológica, mas não por esse motivo.
Enfim, é hora de a esquerda repensar essa adesão ao identitarismo importado dos EUA, que tem jogado o povo nos braços da direita. O povo não é beneficiado pelo “sistema”, ou seja, pelo estado burguês. Se a esquerda se contentar em defender as “instituições democráticas”, vai acabar dividindo o fundo do poço com o PSDB.