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Henrique Áreas de Araujo

Militante do PCO, é membro do Comitê Central do partido. É coordenador do GARI (Grupo por Uma Arte Revolucionária e Independente) e vocalista da banda Revolução Permanente. Formado em Política pela Unicamp, participou do movimento estudantil. É trabalhador demitido político dos Correios e foi diretor da Fentect (Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios)

Coluna

Identitarismo transforma Mário de Andrade em ‘escritor LGBTQIA+’

"Há um esforço para reduzir a literatura e a arte a pequenos grupo sociais"

Campeã do carnaval de São Paulo, a Mocidade Alegre desenvolveu um enredo homenageando o grande escritor modernista Mário de Andrade: “Brasiléia Desvairada: a Busca de Mário de Andrade por um País”. Muito interessante, não tanto por ser inovador, já que variações desse tema já foram adotadas por muitas escolas na história do carnaval, mas porque foge um pouco do lugar-comum optado pelas agremiações, influenciadas pela ideologia identitária.

Ao abrir o portal Terra, no último dia 14, vejo em destaque o seguinte artigo: Quem é o escritor LGBTQIA+ homenageado pela escola campeã do Carnaval de São Paulo. A primeira sensação é de estranheza: quem seria esse escritor? Logo depois, me lembro do tema da Mocidade e de Mário de Andrade, o que causa mais estranheza ainda: transformaram um dos mais geniais escritores de língua portuguesa do século XX em um “escritor LGBT”.

O artigo refere-se às cartas em que supostamente Mário de Andrade revela-se bissexual, mais ainda, o texto afirma que, segundo “Jason Tércio, autor de ‘Em busca da alma brasileira – Biografia de Mário de Andrade’, revelou ainda que o escritor poderia ser pansexual, ou seja, se relacionar com pessoas de todas as expressões e identidades de gênero.” A primeira pergunta é: e daí? Qual seria exatamente a vantagem para a cultura nacional especular sobre os desejos íntimos de Mário de Andrade?

Especulação é a palavra mais precisa para isso. Ao ler a carta que revelaria a opção sexual, escrita a Manuel Bandeira em abril de 1928, é impossível chegar a uma conclusão definitiva sobre a orientação sexual do escritor, pode-se, quando muito, deduzir.

Para ser justo, é uma interpretação possível; o que não é possível é uma conclusão categórica. Mário de Andrade, inclusive, termina o texto dizendo ao amigo: “eis aí uns pensamentos jogados no papel sem conclusão nem sequencia, faça deles o que quiser”.

Especulações à parte, não é a sexualidade de Mário de Andrade que nos interessa aqui, mesmo porque, a vida íntima do escritor não altera uma vírgula sequer de sua grandiosa obra intelectual.

O que chama a atenção é a maneira como o artigo do portal Terra aborda o tema. Reduziram Mário de Andrade a um escritor LGBT como se isso fosse lá algum critério para definir escritores e movimentos literários.

Para ser mais preciso, se um grupo de escritores LGBT quisessem fazer um movimento literário, eles estariam no seu direito, mas Mário de Andrade é Mário de Andrade e ponto final. Mário de Andrade é o principal pensador, agitador e criador do movimento Modernista brasileiro. Como disse, sua vida íntima não muda isso, em nada.

Para que apresentar o grande escritor como LGBT? O que está por trás disso é justamente uma política, impulsionada pela ideologia identitária, de reduzir a arte e a literatura a uma questão de “identidade”, aqui no sentido de pequenos grupos sociais. Embora o artigo não diga isso abertamente, o sentido dessa política é transformar Mário de Andrade como adepto de uma “literatura LGBT”. Ele não seria mais do movimento modernista, que inclusive tem sido muito caluniado pelo identitarismo, mas de outro movimento que nunca existiu, do qual ele nunca sequer pensou em formar, mas que os ignorantes metidos a intelectuais de hoje tentam forçosamente enquadrá-lo.

O artigo fez-me lembrar de outra experiência na internet, dessa vez na Wikipedia. Ao abrir o artigo sobre o romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, vemos a seguinte definição sobre o gênero literário do livro: “Romance homoerótico, ficção erótica”. Substituíram o naturalismo, movimento do qual faz parte Caminha, por um gênero inventado.

É de certa forma compreensível que o chamado movimento LGBT queira adotar determinados personagens e acontecimentos para reforçar a sua posição. Mas o que ocorre aqui não é isso. Há uma deturpação, uma distorção dessa literatura. No final das contas, é um rebaixamento transformar o romance naturalista de Caminha num mero texto erótico, assim como transformar Mário de Andrade em “escritor LGBT”.

O grande poeta e estudioso da literatura, Oswaldo de Camargo, define, em linhas gerais, que a “literatura negra” é aquela que fala sobre o negro. Ou seja, não basta que um escritor seja negro, ele precisa falar sobre o negro. Essa definição, que pode ser debatida e desenvolvida exaustivamente, é precisa. Ela procura inserir a literatura negra como um aspecto da literatura universal.

O identitarismo, no entanto, trata tudo de maneira superficial. Como toda ideologia imperialista, é um rebaixamento e uma degeneração cultural, ele acaba reduzindo algo universal, como é a arte e a literatura, a um problema de pequenos grupos.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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