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Parlamento Europeu

Identitarismo jogou o povo no colo da extrema direita

Ao ignorar os problemas mais urgentes da população, esquerda pavimentou o caminho para que seus inimigos avançassem

Após a vitória avassaladora da extrema direita no parlamento europeu, até mesmo os setores mais iludidos da esquerda brasileira foram obrigados a refletir sobre a eficiência de sua política. Afinal, em países centrais para a luta de classes mundial, como França, Itália e Alemanha, a extrema direita mostrou uma força impressionante, revelando a debilidade da esquerda. Buscando explicar como chegamos até aqui e ensaiando uma mudança de rumo, Liszt Vieira, ex-deputado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), escreveu o artigo O espectro da extrema direita, publicado no portal A Terra é redonda.

Assustado com o desempenho de partidos como a Alternativa para a Alemanha (AfD), considerada “radical” até por vários partidos de extrema direita, o autor não procura, de fato, atacar os motivos que levaram a esquerda a esse fracasso retumbante, mas sim mergulhar de cabeça naquilo que causou o desastre. Diz ele:

“Segundo Enzo Traverso, uma parte da esquerda, incapaz de compreender as mudanças na etapa histórica, segue apostando tudo no combate às desigualdades econômicas, ignorando a importância que a luta cultural ganha em momentos como esse.”

A ideia em si é absurda. Significa dizer que para a esmagadora maioria da população, o que mais importa no mundo não é moradia, emprego, saúde e alimentação, mas sim temas como o aborto e a “ideologia de gênero”. Bastaria, portanto, que um partido político promovesse uma ampla campanha em torno desses temas para conseguir angariar o apoio de milhões. Se fosse assim, seria a forma mais barata de todos os tempos de manter uma política de dominação: bastaria investir algum dinheiro na Internet e construir uma rede de igrejas que estaria tudo resolvido.

O que está por trás dessa concepção, na verdade, é o abandono de uma luta voltada para os problemas reais da população. Quando o autor considera que é preciso apostar na “luta cultural”, ele está dizendo que não se deve apostar na “luta social”, que isso é algo secundário. O foco não deveria estar na geração de emprego e na construção de hospitais, mas sim na mera propaganda cultural. Por mais pretensamente “progressista” que seja tal propaganda, ela serviria, em essência, ao neoliberalismo: isto é, ao abandono de qualquer luta em torno das necessidades dos trabalhadores.

Vieira, no entanto, dirá que não é bem assim. Que é possível combinar as duas coisas, pois “a filósofa norte-americana Nancy Frazer, desde 2001, defendia a necessidade de articular redistribuição com reconhecimento, a reivindicação econômica com a luta pelo reconhecimento das identidades”. Será?

Para responder a isso, analisemos os casos concretos apresentados pelo autor do artigo. Para tentar provar que a esquerda vai bem na questão social, ele nos conta que:

“Os avanços econômicos são claros, mas não são percebidos por grande parte do eleitorado, intoxicado com as fake news e com a propaganda diária nas redes sociais e mesmo na grande imprensa. Inflação mais baixa, PIB [Produto Interno Bruto] mais alto, já cresceu 3,2% ante o mesmo período do ano passado, segundo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística].”

O que ele não se dá conta, no entanto, é que estatística do IBGE não enche a barriga de ninguém. Não adianta em nada apresentar dados sobre o crescimento do PIB, sem que isso signifique uma mudança efetiva na vida da população. O problema não é se o governo Lula é melhor ou pior que o governo Bolsonaro, mas sim se o governo Lula é capaz de realizar mudanças significativas em relação ao seu antecessor ou não. É isso o que impacta diretamente no apoio político da população ao governo e, acima de tudo, é disso que a população mais pobre precisa.

O que as estatísticas favoráveis nesses 18 meses de governo implicam no salário do trabalhador? Implica, por exemplo, que o salário mínimo aumentou míseros R$200 – isto é, R$50 por semana. Significa, se tanto, que o trabalhador poderá comprar, se a inflação permitir, um quilo a mais de carne por semana para alimentar a sua família. Não bastasse ser um aumento pouco relevante, ele se torna ainda mais insuficiente quando levado em consideração que as condições de vida da população despencaram entre 2013, quando a burguesia já preparava o golpe contra Dilma Rousseff, e 2022. Os trabalhadores receberam um choque dos banqueiros e empresários, de forma que necessitam, no momento, de medidas de impacto, e não medidas paliativas, para conseguirem se recuperar.

No que esse discreto crescimento econômico se converte na redução do número de moradores de rua, que cresceu de maneira assustadora nos últimos 10 anos? No que esse crescimento se converte na construção de hospitais e contratação de médicos, que se mostraram completamente desassistidos para enfrentar a crise sanitária da COVID-19? Perguntas como essas mostram, de imediato, que o problema não é que a população despreza as melhorias econômicas e sociais, mas sim que as medidas tomadas nessas áreas são imperceptíveis.

Vieira também explica, por seu turno, onde estaria o erro da esquerda na “luta cultural”:

“Enzo Traverso elogia as políticas identitárias de esquerda que reivindicam o ‘reconhecimento’, ao passo que as de direita reivindicam a ‘exclusão’. Mas a esquerda radical, segundo ele, nunca soube conciliar diferentes pautas identitárias, pondo o fator econômico (a classe) acima das identidades de raça, gênero e religião.”

A tal “luta cultural”, para o autor, seria o que é conhecido como “cultura woke“, ou identitarismo. Isto é, a “luta” daqueles que concebem que o fator de classe não deveria estar acima das “identidades”, de tal modo que o fator econômico acabaria, portanto, não sendo o critério para determinar que política é progressista e que política não é. Os defensores dessa política dirão, por exemplo, que ter uma mulher negra no Supremo Tribunal Federal (STF) é um avanço para os negros e para as mulheres, e não que a dissolução do STF é um avanço para todos os oprimidos. Dirão que é preciso aumentar as cotas raciais nas universidades, e não que os muros das universidades devem ser derrubados para que a educação seja efetivamente universal. Dirão que é papel do Judiciário estabelecer as palavras que podem ou não serem faladas em público, e não que a censura é inimiga de qualquer movimento progressista.

Fica claro, portanto, que não apenas a esquerda não está sabendo levar adiante uma “luta social” efetiva, como também a proposta de “luta cultural” de Vieira é reacionária em todos os aspectos.

Visto isso, agora analisemos a questão das eleições europeias em si. Qual o verdadeiro significado da vitória da extrema direita? Qual a sua plataforma e por que ela tem ganhado tanta simpatia das massas? A resposta é simples: a extrema direita venceu as eleições porque há uma revolta em toda a Europa contra a política oficial do imperialismo. Há uma revolta contra o apoio dos países europeus à Ucrânia em uma guerra cujo único resultado tem sido a destruição da economia europeia. Há uma revolta contra a política neoliberal, que tem levado empresas à falência, provocado o declínio social da classe média e arruinado as condições de vida da classe trabalhadora. Quem foi derrotado não foram as ideias da esquerda, mas sim a política criminosa e genocida do imperialismo.

O maior derrotado das eleições não é um esquerdista, nem de longe. Emmanuel Macron é um banqueiro! É uma figura tão direitista que reprimiu de forma muito, mas muito brutal as manifestações de trabalhadores que protestavam contra a sua reforma da Previdência. É uma figura sinistra como Michel Temer (MDB), que enviou as forças armadas para reprimir os trabalhadores em Brasília quando estes lutavam também contra a aprovação de suas reformas neoliberais. Não bastasse isso, nos últimos meses, Macron também ganharia destaque por sua defesa do regime ucraniano, a ponto de elevar tanto as tensões que a Rússia foi obrigada a ameaçar intervir com armas nucleares.

A mesma ideia se aplica aos Estados Unidos, país cuja crise o autor também não consegue entender, no que diz:

“A maneira como Joe Biden enfrentou a pandemia e seus efeitos econômicos contribuiu para a tranquilidade nacional e a retomada da expansão do PIB. Inspirado pelo New Deal de Franklin Roosevelt, mobilizou o governo como incentivador de investimentos em infraestrutura, energia limpa e pesquisa tecnológica, além dos estímulos à indústria. No plano internacional, Joe Biden está pagando alto preço pelo apoio militar ao genocídio dos palestinos cometido pelo governo de Israel. Mas, na política doméstica, a economia vai bem e antes mesmo do massacre dos palestinos Joe Biden já era mal avaliado pela maioria da opinião pública.”

Há décadas, a situação social nos Estados Unidos vem desmoronando. Até mesmo nos filmes produzidos pelos norte-americanos, não é raro ver moradores de rua e usuários de droga largados. Tudo isso apenas se intensificou com a crise de 2008, que atingiu duramente o país. Os norte-americanos estão vendo suas condições de vida piorarem, a classe média está vendo os seus privilégios irem para o espaço, e um discreto crescimento econômico não resolverá nada de efetivo. É por isso que cresce o fenômeno Donald Trump: ele é identificado como um político que irá privilegiar a indústria local, e não privilegiar as aventuras militares cada vez mais custosas.

Mas há também um aspecto político importante: os norte-americanos sabem que suas condições de vida são garantidas não pelo desenvolvimento econômico do país em si, mas pela exploração de todos os povos do mundo. Só é possível na medida em que os norte-americanos consigam manter a sua autoridade militar e, assim, consigam continuar roubando as riquezas dos demais países. Uma vez que Joe Biden está sendo identificado como o responsável por desastres militares, os norte-americanos veem uma relação direta entre a política belicista de Biden e a sua situação econômica. É por esses fatores que mesmo a ideia de que “Joe Biden está pagando alto preço pelo apoio militar ao genocídio dos palestinos cometido pelo governo de Israel” também tem uma questão econômica por trás.

Se não há uma rejeição em si às ideias da esquerda, mas sim à política do imperialismo, como explicar, então, o avanço da extrema direita? Simples: a extrema direita avança porque a esquerda não se coloca no papel de apresentar uma alternativa à falência do sistema imperialista de dominação. Na Europa, a social-democracia e os verdes, apresentados como parte da “esquerda”, apoiam a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Rússia. Nos Estados Unidos, Bernie Sanders, que dirige uma ala mais esquerdista do Partido Democrata, tem apoiado sistematicamente a política de Joe Biden. Nessas condições, não há como a extrema direita não crescer. Basta um pouco de malandragem, basta um pouco de demagogia, que qualquer organização, mesmo que da burguesia, aparecerá como a antítese da política oficial do imperialismo, enquanto a esquerda aparecerá como o seu irmão siamês.

Esse problema também fica claro no Brasil. Lizst Vieira lamenta que “não está sendo reconhecida, como merecia, a ação de apoio emergencial do Governo Federal ao Rio Grande do Sul, inclusive com diversas visitas pessoais do Presidente Lula ao Estado”. Mas a culpa não é do povo. A culpa é da esquerda que foi incapaz de apontar o dedo para o grande responsável pela catástrofe: Eduardo Leite (PSDB), que, inclusive, foi apoiado por setores da esquerda em sua eleição para governador. Desse jeito, é até natural que a esquerda seja vista como culpada pela crise.

O autor, inclusive, é também responsável pela sustentação de Eduardo Leite no governo, na medida em que fala coisas como “a vida humana e animal está ameaçada pelas mudanças climáticas, resultantes principalmente da emissão de gases de efeito estufa e, no Brasil, do desmatamento provocado pelo agronegócio predatório”. Pôr a culpa nas “mudanças climáticas” é o mesmo que pôr a culpa em seis bilhões de pessoas, e não no criminoso que deixou 600 mil pessoas sem casa para dar dinheiro para seus amigos banqueiros.

O balanço de Lizst Vieira, portanto, não tem como objetivo uma mudança de rumo. Não visa alertar ao governo brasileiro que ele precisa partir para um enfrentamento contra os vampiros neoliberais para evitar que seu governo seja completamente implodido. Seu objetivo é, na verdade, pressionar a esquerda para aprofundar ainda mais os seus erros. Tanto é assim que, depois de muita enrolação, o autor conclui que:

“Diante disso, só um trabalho de base a longo prazo pode reverter essa crença e esse apoio dos fiéis e de boa parte da classe média aos políticos de extrema direita, com o quais se identificam principalmente pelos valores conservadores, e não por propostas econômicas ou projetos políticos. Possivelmente, esses valores conservadores e o ódio passaram a influenciar mais o comportamento do eleitor do que a economia.”

Para Vieira, não há nada que possa ser feito agora. A solução estaria em esperar que, quem sabe, no futuro, as pessoas fossem convencidas de que deveriam votar em um candidato de esquerda. Essa ideia em si mostra que todo o seu alarde contra a extrema direita não é sério. Ninguém genuinamente preocupado estaria disposto a esperar décadas até que a extrema direita seja combatida. Mostra que tudo não passa, no final das contas, de um pretexto para que a esquerda se anule politicamente e se transforme em uma mera apoiadora do imperialismo.

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