Afrânio Peixoto publicou a sua História do Brasil em 1944, três anos antes de sua morte. Nascido no interior da Bahia, foi médico, deputado federal por seu estado natal e estudioso da cultura brasileira: de acordo com Pedro Calmon, outro grande historiador brasileiro, foi o nosso principal estudioso da obra de Camões e Castro Alves.
Na sua História do Brasil revela ser um discípulo de um dos nossos maiores historiadores: Capistrano de Abreu. E de fato, compartilhava alguns pontos de vistas comuns ao autor do Capítulos da História Colonial.
Por exemplo, foi um crítico das bandeiras paulistas, ao vê-las essencialmente como atividade fora da legalidade e desumana. Do ponto de vista institucional, estava correto: desde 1605, quando emergem as bandeiras, a Coroa proclama os índios como livres e em 1609 são os nativos equiparados aos colonos, tendo os jesuítas como curadores.
Obviamente, a crítica de Peixoto e de Capistrano em relação às bandeiras não guarda a mais pálida semelhança com iniciativas como a do ataque da estátua do Borba Gato promovida há dois anos pelo setor da esquerda vinculada às ONGs estrangeiras. O atual ataque à memória dos bandeirantes é antes de tudo um movimento de propaganda ideológica de destruição do patrimônio imaterial do Brasil: aniquilamento do passado e da nossa identidade como um primeiro passo para o aprofundamento da espoliação e saque das riquezas nacionais, materializadas principalmente na proposta de internacionalização da Amazônia e balcanização do país, conquanto foram as bandeiras que lançaram as bases da ocupação e consolidação das nossas fronteiras.
Peixoto não deixa de reconhecer a importância das bandeiras na configuração do nosso território e para a estruturação da nossa unidade linguística e cultural. Era, porém, simpático aos jesuítas que objetivamente se colocavam em oposição aos sertanistas, o que provavelmente explica a antipatia com os bandeirantes. Via as missões jesuíticas como um esteio da civilização não só dos índios, mas dos colonos de vida desregrada: compreendia, em todo o caso, a complexidade do problema e não deixou de reconhecer os méritos das entradas e bandeiras.
“Essas entradas e bandeiras para descer índios escravos e devassar o sertão em busca de minas, dão endereço ao Brasil colonial predador, agrário, criador e mineiro. Os objetivos saíram um dos outros e misturaram-se. Eles trouxeram a consequência da integração do país além do litoral possuído.
(…)
As entradas despovoadoras, captando o índio, deixavam estradas no deserto, para a civilização: evidentemente o manso processo colonizador dos Jesuítas, de José Bonifácio, do General Rondon, seria preferível: mas a violência dos bandeirantes tem justificações de Varnhagen, de Von Ihering e de todos os coloniais europeus com os povos bárbaros. Aliás, nem sempre eles, selvagens, têm a docilidade resignada. O mundo é dos capazes; é a lei de ferro da natureza e da civilização. O mesmo santo e doce Anchieta chegava à exasperação, para catequizar o índio: dizia que para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de ferros”. (pág. 108/109)
Vê-se, portanto, que é possível ter uma posição crítica sobre o problema das bandeiras sem, com isso, levar adiante uma campanha antinacional de destruição da memória brasileira.
Outro aspecto que faz esta História do Brasil estar a anos-luz de distância das mais recentes tendências historiográficas diz respeito à centralidade que o Autor dá ao português na constituição do Brasil, ao passo que hodiernamente tem sido o elemento lusitano basicamente desqualificado como um invasor inoportuno e um genocida de índios.
Os capítulos iniciais do ensaio de Peixoto tratam dos primeiros empreendimentos da navegação portuguesa desde 1415, quando da Tomada de Ceuta por Dom João I: o papel dos portugueses é o de derramar a cultura mediterrânea pelo mundo através da navegação, considerando o historiador que as comunicações são “a causa primeira da civilização: nestes contatos, a convivência multiplica ações e reações psicológicas, que se tornam experiências e colaborações inovadoras e afinam o homem em sentimento, inteligência, vontade, como fazem iniciativas, empresas e progresso social.” (pág. 6).
Gradualmente, os navegadores portugueses vão circunscrevendo o continente africano como meio alternativo de rota às Índias, o que se tornou necessário, particularmente depois da impossibilidade de prosseguimento da via tradicional pela tomada de Constantinopla pelos Turcos, em 1453.
Em 1444, Denis Dias atinge o Cabo Verde e no ano sequente Nuno Tristão descobre a Senegâmbia. Em 1469 dá-se a descoberta do golfo da Guiné. Em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança. Finalmente, Vasco de Gama torna-se o primeiro europeu a atingir a Índia atravessando os oceanos Atlântico e Índico, quando chegou a Calicute, em 20 de maio de 1498, abrindo assim o caminho para as Índias. E, finalmente, em 22 de abril de 1500, numa quarta feira à tarde, Pedro Álvares Cabral avista o Brasil, atingindo o território onde hoje se situa a cidade de Porto Seguro/BA.
Afrânio Peixoto muito propriamente diz ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo achar remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.
A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro, como se vê no mapa abaixo descrito:
Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento do território, exploração e defesa. Na expedição foram localizados portugueses degredados que possivelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes do 1500. Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente.
Afrânio Peixoto, ao prefaciar o seu livro, diz ainda não haver, em meados do século XX, uma efetiva História do Brasil. Ele fala em meio milhão de documentos, no arquivo Colonial, em Lisboa, à espera dos pesquisadores.
O que tínhamos até então, segundo o intelectual baiano, são “ensaios” subscritos por aqueles que até hoje melhor escreveram a nossa história: desde Varnhagen, passando por Capistrano de Abreu, Afonso de Taunay, Pedro Calmon e, na história econômica, Simonsen.
Quando se coteja esses grandes pensadores do Brasil com o que tem sido produzido e divulgado em termos de História do Brasil atualmente, temos que concordar com essa tese: a História do Brasil ainda está para ser escrita.