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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

‘Helena’ – Machado de Assis

Existe uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas grandes fases

Resenha Livro – “Helena” – Machado de Assis – Iba Mendes Editor Digital

Existe uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas grandes fases.

Num primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram estabelecidas as bases do realismo-naturalismo  literário em terras brasileiras.

Essa forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma ressalva.

Vistos todos os livros, de conjunto, é possível de se perceber todas as tendências intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição e escritor, como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo, sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado, extraindo elementos para a criação de um estilo próprio[1].

Válido ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.

Em todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de Assis passa por duas etapas bem diferenciadas.

Poderíamos falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos românticos e sua obra tem um caráter mais convencional.

Dessa primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”   (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).

O divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista deu—se, como dito, a partir do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).

A partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua vez marcaram as obras de juventude.

A pouco verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou exigências sociais, como se dá com a personagem Helena em seu romance homônimo, é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias Póstumas.

Em ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.

A arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.

Num primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de um conformismo político.

Num segundo momento,  essa descrição da vida terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais vigentes.

Neste marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao universo burguês citadino, e, frequentemente,  desconsideram as desigualdades sociais e a principal chaga social da época: a escravidão.

Esse ponto de vista também é discutível.

Mesmo em “Helena” (1876), um livro tipicamente romântico, voltado um público feminino da classe dominante do Brasil do II Império, tanto o tema da escravidão como o da pobreza estão presentes na obra, ainda que de forma tangencial.

Pode-se dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades – há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”. Mas, evidentemente, o romance de Machado de Assis pode ser caracterizado de diversas formas, menos como arte voltada ao proselitismo político.

Sobre o Romance Helena.

“Helena” foi publicado em folhetins entre agosto e setembro de 1876 pelo jornal “O Globo”. Foi reunido naquele mesmo ano num volume único pelo editor Baptiste-Louis Garnier.

Consta ter sido um sucesso de público: foi, aliás, escrito quando o escritor já era conhecido e consagrado pelo pequeno público leitor da época.

A história se passa em meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro.

Após a morte por apoplexia do Conselheiro Vale, um rico potentado do Rio de Janeiro, seu filho e herdeiro Estácio recebe através do testamento a informação de que seu pai, conhecido em vida pela infidelidade conjugal, deixara uma filha oriunda de relacionamento ilícito. Como última disposição, o morto manifestou a vontade de que essa descendente fosse acolhida como filha legítima e parte da família.

Esta filha é Helena, a protagonista da história.

Ao chegar à casa do falecido Conselheiro, aos dezessete anos de idade, é vista com reservas, não tanto pelo seu meio irmão, mas por D. Úrsula, senhora de idade, beata e irmã do Conselheiro. Contudo, as qualidades morais de Helena e mesmo a sua beleza vão aos poucos desconstituindo todas as reservas, inclusive da severa tia de Estácio:

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócio, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”.

A afeição entre a protagonista e o seu meio irmão vão se acentuando ao ponto de sugerir cada vez mais ao leitor a existência de um amor proibido, posto que incestuoso.

Helena e Estácio cresceram em famílias separadas: não aprenderam a falar pelos lábios da mesma mãe. Quis a fortuna que entre os dois não houvesse a imagem da infância comum e a comunhão dos primeiros anos. Em plena mocidade, passaram, do total desconhecimento um do outro para a intimidade de todos os dias no lar comum. Circunstâncias que fizeram brotar um amor impossível, que, aliás, não era sequer percebido de forma consciente por Estácio.

Posteriormente, este sentimento terá outros desdobramentos diante da impactante notícia de que o Conselheiro Vale não fora efetivamente o pai biológico de Helena.

Essa descoberta se deu após Estácio confrontar Salvador, um homem em situação de miséria que morava numa chácara próxima da residência do Conselheiro.

Helena de forma clandestina diariamente visitava aquela casa, até quando seu irmão, voltando de uma caçada, viu a protagonista se despedindo daquele homem velho, naquela palhoça em situação de abandono. Num primeiro momento, pensa se tratar de um enlace amoroso que levaria à desgraça e desmoralização de Helena, até então vista como a mais cândida das criaturas. De uma forma previsível, ao melhor estilo romântico, a pureza de intenções da protagonista será depois confirmada: Salvador era de fato o pai de Helena e não o seu amante. Já a mãe de Helena abandonou Salvador para viver em melhores condições na companhia do Conselheiro Vale, ainda que na forma de uma relação extraconjugal e clandestina. Àquele momento, Helena era uma criança: Salvador aceita o triste destino, com a esperança, depois confirmada, de que o Conselheiro premiaria sua filha pobre com um bom legado.

Após a descoberta do segredo envolvendo o passado da protagonista, fica também evidenciada a possibilidade do amor entre Estácio e Helena: ambos não são irmãos. Mas, mesmo deixando de ser um amor incestuoso, ainda havia a barreira social, esta tão intransponível quanto a barreira moral. Reconhecida até então como filha do Conselheiro, passaria a ser identificada como descendente de um simples artesão.

Ao término da história, Helena falece após a forte comoção oriunda da revelação da do seu passado. O amor impossível entre ela e Estácio apenas poderia se resolver através desta forma.

Machado de Assis no prefácio do livro reforça aquilo que expusemos anteriormente: Helena é uma obra de juventude, parte da fase de maturação artística.

Ainda assim, demonstrou alguma satisfação com o resultado do livro:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco da mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.”

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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