Tornou-se consenso a ideia de que, não fosse o veto dos Estados Unidos, já teria havido um cessar fogo entre palestinos e israelenses. Em declaração recente no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a representante russa Anna Evstigneeva expressou essa ideia claramente:
“Os norte-americanos estão bloqueando quaisquer esforços da comunidade internacional para encontrar maneiras de promover o assentamento do Oriente Médio e corrigir a injustiça histórica contra os palestinos. Isso inclui o veto dos EUA ao projeto de resolução do Conselho de Segurança que consagra uma recomendação à Assembleia Geral para admitir a Palestina como membro pleno da ONU”.
Diante da pressão internacional para que “Israel” pare o genocídio contra o povo palestino, uma série de propostas já estão colocadas sobre a mesa para que seja feito um acordo de cessar fogo. Uma das propostas que mais tem ganhado força nos últimos dias é a feita pela Argélia, que estabelece três condições para o fim do conflito: o cessar fogo na Faixa de Gaza, a libertação “incondicional e imediata” de todos os prisioneiros feitos pelo Hamas e a suspensão imediata da ofensiva israelense em Rafá.
Antes de apresentar o texto, o embaixador do país na ONU, Amar Bendjama, já havia dito que a Argélia apresentaria uma proposta “curta, decisiva, para interromper a matança em Rafá”. Mesmo assim, os Estados Unidos já se posicionaram contra a proposta, dizendo que ela é “parcial e não observa o simples fato de que o Hamas é o culpado por este conflito”, conforme disse o porta-voz adjunto do Departamento de Estado, Vedant Patel.
Ao polarizar com os interesses dos Estados Unidos, ainda mais sendo um país oprimido, com longa tradição de luta de caráter nacional, a Argélia aparece como a representante dos interesses do povo palestino. Ainda que o país esteja verdadeiramente empenhado em fazer parar o genocídio em Gaza, não se pode dizer que sua proposta esteja de fato condizente com as aspirações do povo que luta por sua libertação.
A proposta de retirada das tropas sionistas de Rafá é correta. Trata-se de uma invasão, de uma agressão a um povo, cuja população civil tem sido vítima de todo tipo de crime de guerra. Não há polêmica em torno dessa condição proposta pela Argélia.
A proposta do cessar fogo na Faixa de Gaza, por sua vez, abre margem para um debate. De acordo com o Dicionário Caldas Aulete, o termo se refere a uma
“Suspensão temporária ou definitiva das hostilidades, entre inimigos que se guerreiam; acordo que propicia essa cessação ou suspensão; TRÉGUA; ARMISTÍCIO”.
Um cessar fogo significaria, portanto, que nem as forças de ocupação de “Israel” poderiam agredir a população palestina, nem as forças de resistência da Palestina poderiam agredir a população israelense. Mas como isso se daria na prática?
Um cessar fogo por parte das forças de resistência consistiria, basicamente, em suspender a Operação Dilúvio de al-Aqsa. O Hamas, a Jiade Islâmica, a Frente Popular para a Libertação e as outras inúmeras organizações armadas não lançariam mais mísseis contra alvos na Palestina ocupada, nem atacaria os soldados israelenses. E o cessar fogo por parte de “Israel”, no que consistiria?
Diante da carnificina em andamento, se “Israel” parasse com os seus bombardeios contra civis e contra as incursões terrestres na Faixa de Gaza, já seria, naturalmente, um alívio para o sofrimento palestino. Mas um cessar fogo de fato consistiria em “Israel” parar de perseguir e assassinar as lideranças da resistência, que são perseguidas até mesmo em outros países. Consistiria em os “colonos” cessarem suas agressões contra os palestinos em suas terras. Consistiria em as forças de ocupação interrompessem suas operações policiais nos bairros da Cisjordânia.
Sem discutir um cessar fogo nesses termos, o acordo serviria apenas para desarmar a resistência palestina. Serviria apenas para que “Israel” pudesse atacar unilateralmente as organizações palestinas, tornando o povo árabe ainda mais vulnerável para uma ofensiva militar futura. Não se pode esquecer, afinal, que o objetivo de “Israel”, já expresso em inúmeras oportunidades por suas autoridades, é “limpar” a Faixa de Gaza da população palestina.
Passemos agora ao terceiro problema, a libertação dos prisioneiros. O maior problema dessa condição é que ela indica que o Hamas seria o único lado da guerra a deter prisioneiros. Mas nada poderia estar mais longe da realidade. De acordo com grupos de monitoramento de direitos humanos, “Israel” detém nada menos que 9.500 presos políticos palestinos. Pedir que o Hamas liberte seus prisioneiros incondicionalmente chega a ser uma piada de mau gosto.
Analisadas as três condições propostas pela Argélia, fica claro que, ainda que a minuta tenha sido criticada pelos Estados Unidos, ela é bastante desfavorável para os palestinos. Ela traz um alívio a custas de um enorme retrocesso militar.
Alguém poderia argumentar, no entanto, que, na diplomacia, o que prevalece não é o que é “justo”, mas sim a correlação de forças. Os bolcheviques, que jamais poderiam ser acusados de não terem consciência do que seria ou não justo para um povo oprimido, se submeteram a um péssimo acordo com os alemães no final da Primeira Guerra Mundial. Nem Vladimir Lênin, nem Leon Trótski achavam justo que a Rússia abrisse mão de suas terras em nome dos interesses do imperialismo alemão. No entanto, como o dirigente da Revolução Russa afirmou, “neste momento a nossa revolução é mais importante que tudo o resto; devemos garanti-la, custe o que custar”. Nada mais acertado: não tivessem os bolcheviques assinado o acordo, a revolução provavelmente seria derrotada diante da guerra com os alemães.
O problema, voltando aos dias de hoje, é que a proposta da Argélia não corresponde à correlação de forças real. Um cessar fogo em que o único ganho seria o fim das agressões israelenses seria, no fundo, uma derrota para a resistência palestina. Afinal, ainda que os ataques parassem, teriam deixado um saldo de 40 mil mortos, milhões de “deslocados”, dezenas de milhares de feridos e um grande rastro de destruição. No fim das contas, as condições propostas pela Argélia consistiriam em uma espécie de punição para o Hamas – que é justamente o que querem os Estados Unidos, ao dizer que o grupo revolucionário deveria ser considerado como “o culpado” pelo conflito.
A questão é: será que o Hamas está em uma situação tão delicada que deveria aceitar esse tipo de acordo? Não, não está. Muito pelo contrário: quem está em uma situação muito difícil é “Israel”. Em quase oito meses de conflito, mesmo com o apoio financeiro e militar dos países mais poderosos do mundo, a entidade sionista foi incapaz de prender ou assassinar os principais líderes da resistência. Ainda que tenha matado cruelmente milhares de civis, está falhando miseravelmente no campo de batalha, não conseguindo infligir grandes baixas aos combatentes inimigos. Estes, por sua vez, estão causando enormes estragos nas forças de ocupação, destruindo tanques e armamentos caríssimos com granadas caseiras.
A derrota militar de “Israel”, por sua vez, está levando a um colapso da sociedade israelense. A cada dia que passa, a possibilidade de o norte da ocupação se tornar independente vai se tornando mais real. O governo está em uma crise total, incapaz de satisfazer os setores mais moderados e os setores mais extremados. Não bastasse a crise interna, “Israel” está completamente isolado do ponto de vista da opinião pública mundial.
O acordo nos termos propostos pela Argélia, ainda que genuinamente interessado em fazer parar o genocídio, acabaria por salvar “Israel” de uma situação muito delicada. Serviria, do ponto de vista político, para apresentar uma vitória, mesmo diante de uma grande derrota. A entidade sionista, ao menos, poderia ainda ostentar o título de potência militar, que teria causado estragos unilaterais a seus inimigos.
O acordo que é não apenas justo, mas que corresponde fielmente à correlação de forças no momento é justamente aquele que é proposto pelo Hamas. O que não apenas pede o fim das hostilidades e a saída das tropas de Gaza, mas também que exige que uma troca de prisioneiros, em proporção favorável para os palestinos, e que exige a reconstrução de Gaza. Um conjunto de propostas que, além de reparar os danos causados, serviria para deixar claro quem é o vencedor do conflito. E que, portanto, levantaria a cabeça de todos os oprimidos.