No artigo Mais uma “greve do fim do mundo”, Luciano Rezende Moreira apresenta um conjunto de argumentos frequentemente reproduzidos por aqueles que, assim como O Globo e O Estado de S. Paulo, acusam o movimento paredista de servidores, professores e técnicos-administrativos de “oportunismo”. Enquanto os jornais burgueses, muito conscientes de seus interesses, saem na defesa do fim da greve, temendo que Lula ceda à pressão e aumente ainda mais os “gastos sociais” do governo, Moreira defende o fim da greve na ilusão de que o movimento é negativo para o presidente da República. E como a suposta defesa do governo, neste caso, não passa de uma defesa dos interesses reais do grande capital, o artigo de Moreira não poderia deixar de ter um caráter muito reacionário, que não apenas não serve para defender o governo, mas que serve para atacar a democracia operária.
Moreira inicia seu artigo com uma acusação bastante comum entre aqueles que procuram defender o fim da greve nas fileiras da esquerda. Diz ele:
“O mais inacreditável nisso tudo é que os sindicatos ditos representativos da categoria, que persistem em arrastar essa greve até o ‘fim do mundo’, são os mesmos que ficaram omissos os seis piores anos para a educação brasileira. Cordeirinhos com Temer e Bolsonaro. Leões com Dilma e Lula.”
Segundo o autor, portanto, deve ser visto com desconfiança toda vez que uma categoria entra em greve em um governo progressista – afinal, o governo seria “amigo” dos trabalhadores. Sendo assim, se os técnicos, professores e estudantes não entraram em greve durante o governo Bolsonaro, mas entraram durante o governo Lula, é porque estariam mal-intencionados.
É uma tese sem sentido. O fato de que, sob um regime capitalista, a esquerda chegar à presidência da República não significa, de forma alguma, que a esquerda tenha tomado o poder político. Pelo contrário: implica apenas que a mobilização das massas, em choque com a direita, é tão profunda que ela conseguiu impor uma vitória à burguesia. Uma vitória, obviamente, parcial, e não completa. Se é assim, um governo de esquerda continua sendo um governo de esquerda sob um Estado capitalista – e, portanto, um governo que não é dos trabalhadores, mas sim um governo que tenta, diante de toda a sabotagem das instituições burguesas, defender os interesses dos trabalhadores em alguma medida.
O governo de esquerda é, portanto, o melhor governo para os trabalhadores entrarem em greve. E, de maneira oposta, não há coisa melhor para um governo de esquerda que os trabalhadores estejam ativamente mobilizados em torno de seus interesses. Como o governo Lula pretende reestatizar a Eletrobrás, por exemplo, se não contar com uma ampla e radical mobilização dos eletricitários contra os vampiros que tomaram a empresa de assalto? Como conseguir levar adiante uma política minimamente nacionalista na Petrobrás, se não contar com a intervenção dos petroleiros na luta contra os grandes monopólios internacionais?
Uma das maiores greves da história do País foi a greve dos 300 mil, que ocorreu justamente durante o governo mais decididamente nacionalista de toda a história nacional: o último governo de Getúlio Vargas. A greve ocorre, não por acaso, no mesmo ano em que foi fundada a Petrobrás: era um momento em que as massas compreendiam que era possível derrotar os seus inimigos, pois o próprio governo, ainda que vacilante, estava travando uma luta contra os maiores inimigos da classe operária, o imperialismo.
Há ainda que se acrescentar que, entre as condições que favorecem o surgimento de greves, está a relação tradicionalmente mais democrática entre o governo de esquerda e os trabalhadores. O próprio Lula é um ex-sindicalista, e jamais seria capaz de fazer algo como, por exemplo, está fazendo Javier Milei, na Argentina, que propôs cortar os benefícios sociais de quem participar de manifestações públicas.
O segundo argumento de Moreira, ainda que seja uma intriga, tem parte de verdade. Diz ele:
“No Brasil, quando Dilma mais precisava de apoio, na antevéspera do Golpe, Andes e Sinasefe faziam uma cruzada pelo país, onde se podia ver faixas e panfletos em que a presidenta era retratada como uma ratazana, entreguista, vendilhona. Veio o Golpe e nossos revolucionários assistiram, debaixo de suas camas, um vendaval que varreu para longe muitas conquistas que levamos anos e anos para serem alcançadas. Agora, exigem uma reconstrução imediata”.
O que é verdade em sua argumentação é que, de fato, houve setores da esquerda brasileira que apoiaram o golpe de 2016 explicitamente ou que, no mínimo, contribuíram para que o golpe acontecesse. É o caso, por exemplo, do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU), que defendia a palavra de ordem de “Fora todos” – isto é, a derrubada do governo de Dilma Rousseff. E é o caso de setores do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que ingressaram na Frente Povo sem Medo, que se negava a lutar contra o golpe de Estado, dizendo ser mais importante a luta contra “o ajuste fiscal da Dilma”. Mas entre esses fatos e a greve em tela há uma grande diferença.
A mobilização nas instituições federais de ensino não é o resultado de uma palavra de ordem fabricada por um partido qualquer, ela é o resultado de um conjunto de demandas reais. E não há nada mais natural do que existirem essas demandas: o País foi governado, durante seis anos, por representantes do grande capital, por governos inimigos dos trabalhadores, que procuraram fazer a situação social, econômica e trabalhista retroceder ao máximo. É hora, portanto, de aproveitar as condições favoráveis para exigir uma mudança. Isso nada tem a ver com exigir a derrubada do governo, mas sim com pressionar o governo para que atenda as necessidades da população que o elegeu. São reivindicações reais, concretas e necessárias, como o reajuste salarial.
Moreira responde indiretamente a essa questão, dizendo que as reivindicações são “pequeno-burguesas” e corporativistas, pois “hoje bradam contra a criação de 100 novos institutos federais que, para eles, subtrai recursos que deveriam ser destinados para aumentar seus salários, gratificações e ‘estrutura’ de trabalho”. Quanto à segunda acusação, é uma calúnia: a mobilização não é contra a criação de institutos federais. Uma vez mais, o autor confunde o programa de luta das categorias em greve com o programa político de determinadas organizações que participam da greve. Quanto à primeira, é realmente difícil dizer do que se trata. Em que sentido uma reivindicação de aumento salarial seria “pequeno-burguesa”? Em que sentido a luta contra o novo ensino médio, isto é, a luta contra a avacalhação total do ensino público, seria “pequeno-burguesa”?
Os professores e técnicos-administrativos são em si categorias pequeno-burguesas, ao rigor da palavra. E a maioria dos estudantes universitários também o são. Mas o que isso significa? Significa que as categorias só poderão entrar em greve se suas reivindicações forem operárias? E quem decide isso? Será o Tribunal Superior do Trabalho (TST) quem vai fornecer o carimbo de reivindicação operária ou não? Neste sentido, a Constituição Federal, ainda que diariamente desrespeitada, é mais democrática que Moreira, pois estabelece, em seu artigo 9º, que:
“É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.
Se Moreira acha o conjunto de reivindicações limitado, e efetivamente o é, tem todo o direito de travar uma luta para que o programa da greve mude. No entanto, o desdém com as reivindicações é, na verdade, o desdém com a democracia operária, com o direito dos trabalhadores de utilizarem seus métodos para lutar por seus interesses.
O autor também responde indiretamente a essa questão. Ele critica as “assembleias esvaziadas (adora atividades virtuais e remotas) onde uma minoria decide pela ampla maioria”. Ora, se as assembleias são esvaziadas, é porque elas refletem um cenário geral que ainda é de refluxo, e não de ascenso dos trabalhadores. Mas se esse argumento servir para determinar se uma greve é ou não legítima, então só haverá greves legítimas quando a classe operária estiver à beira de uma revolução. É absurdo e, uma vez mais, reflete a indisposição de Moreira com a democracia operária. O discurso de que as greves não são legítimas porque são produto de uma “assembleia esvaziada” é o discurso dos patrões, que exploram os trabalhadores, não dão aumento e ainda se valem do medo que os setores mais atrasados têm de serem demitidos para dizer que é uma minoria de “radicais” que apoia a greve. Se há manipulação de alguma direção sindical, cabe apenas aos trabalhadores, por seus meios, se insurgirem contra ela.
Sempre haverá trabalhadores que se opõem ou são favoráveis à greve, sempre haverá trabalhadores que defendem os interesses patronais. A sociedade é desigual. Mas é justamente a democracia operária, o direito dos trabalhadores de se organizarem de maneira independente de seus patrões, que permitem que os setores mais avançados prevaleçam sobre os mais atrasados. Ao chamar de “máfia” as direções sindicais, Moreira parece, na verdade, estar chamando a Polícia Federal para intervir.
O autor acusa as categorias de atuarem como “força auxiliar da extrema-direita”. Nada poderia ser mais falso: não apenas a campanha contra a democracia operária inspira uma intervenção do Estado nas organizações dos trabalhadores, como também enfraquece a luta dos trabalhadores contra os setores da direita da “frente ampla”, aumentando, assim, a pressão sobre o próprio governo.