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Coluna

Golpe de Estado à brasileira e a morte do que nunca foi vivo

O tipo penal aludido pelo aparelho de repressão do Estado brasileiro encontra-se descrito no art. 359-L e -M do Código Penal

A confraternização do dia 08 de janeiro reuniu golpistas, lavajatistas e afins para „defender a democracia“ no dia em que completa um ano das invasões aos prédios públicos pelos apoiadores de Bolsonaro. Fiel aos seus princípios O PCO não apoia essa manifestação.
O ataque de 08 de Janeiro foi grave, simbólico e merece uma resposta estatal, de acordo com os preceitos fundamentais do Direito burguês, mas daí dizer que foi tentativa de golpe de Estado contra a democracia brasileira, já são outros quinhentos. Senão, vejamos.
O tipo penal aludido pelo aparelho de repressão do Estado brasileiro encontra-se descrito no art. 359-L e -M do Código Penal. Trata-se de uma novatio legis in pejus cujo bem jurídico tutelado são as instituições democráticas.

De acordo com o art. 359-L, constitui infração penal punível com reclusão de 4 a 8 anos, mais a pena correspondente à violência, “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. O crime subsequente, golpe de estado, consiste em „Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído“.

Os tipos foram incluídos durante o governo Bolsonaro, para mencionar algo relativo a mens legislatoris, mas são tantas as violações aos princípios do Direito burguês que tenho dificuldade para organizar o pensamento e escrever com precisão. Vamos analisar essa lambança por partes, feito Jack, o Estripador.

A estrita legalidade penal

A dogmática jurídica do Estado burguês impõe que a lei penal descreva o fato típico com todos os seus elementos e circunstâncias, de modo que somente seja considerado crime a conduta que corresponder integralmente àquela descrição prevista. A técnica procura evitar que sejam alcançadas pela descrição normativa condutas que não sejam penalmente relevantes. O princípio da estrita legalidade ou taxatividade, assim, obriga o legislador a prever somente condutas que sejam potencialmente muito lesivas a um bem jurídico tutelado muito relevante. Daí dizer-se também do garantismo penal.

A fórmula abstratamente considerada já seria problemática se fosse observada pelas instituições. E se levarmos a sério o Direito Penal e seus princípios, veremos de plano que o dispositivo é claramente inconstitucional, porque viola frontal e escancaradamente a garantia penal mais comezinha.

Do bem jurídico tutelado

O que seria um Estado Democrático de Direito? É possível defini-lo juridicamente? É legítimo que o Estado burguês, de acordo com sua dogmática jurídica, se valha do Direito Penal para punir condutas potencialmente lesivas ao Estado de Direito? Se o leitor responder de maneira positiva qualquer destas perguntas, saiba que isto não está nem de longe de acordo com a dogmática do Direito burguês, nem com o que se concebe na literatura jurídica como Estado de Direito. Qualquer resposta sim estará desprezando alguma garantia penal e, portanto, será parcial. Simples assim.

Há pelo menos um século de estudos e produção científica sobre o Estado Democrático de Direito, e continua. Não é portanto, um bem jurídico em si, mas um modelo de Estado que pressupõe a observância de uma série de preceitos e princípios a serem observados pelas suas instituições. Democracia é outro bem jurídico que não pode ser tutelado pela via do Direito Penal. Pelo menos não deste modo. Estado de Direito e Democracia são conceitos políticos de considerável abstração, sempre em desenvolvimento, e que pressupõem conflitos e dissensos por sua própria natureza.

Valer-se do Direito Penal para tutelar preceitos de natureza estritamente politica é uma prática contrária ao garantismo penal, portanto, contrária ao próprio Estado Democrático de Direito.

Segurança jurídica

Este preceito também decorre do Estado de Direito e visa a estabilidade e previsibilidade da atuação do Estado. A lógica é a seguinte: o Direito burguês tem sua gênese filosófica no liberalismo e no Direito Natural. A ideia é que a Carta de Direitos Fundamentais, de natureza declaratória, já que se trata de uma Carta de direitos pré-existentes ao próprio Estado e cujo destinatário é ele próprio. Trata-se de uma série de limitações à atuação do Estado, à inspiração da Magna Cartha inglesa de 1215. O Estado, então, é criado pela Constituição que tem natureza contratual, e, portanto, impõe direitos e deveres a todos, e, ao Estado, limites. Há inúmeras discussões filosóficas a respeito, mas esta formula genérica que mencionei de forma rasa, serve para ser ter uma ideia de como se orienta a dogmática do Direito burguês. E para os mais atentos, o cheiro de fascismo já está nos sufocando.

Adequação típica

Suponhamos que nada disso seja considerado, e tomemos o dispositivo como constitucional e, portanto, válido. Cabe então fazermos a análise de todos os elementos do tipo penal para saber se é possível subsumir os fatos à regra penal em comento.
O tipo do 359-L prevê apenas duas formas pelas quais se atenta contra o Estado Democrático de Direito: impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Ou seja, para a subsunção é preciso que o dolo do tipo consistente na vontade livre e consciente de praticar pelo menos um dos verbos – impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais, esteja inequivocamente caracterizado. E ainda que as condutas sejam idôneas para atingir o resultado pretendido, qual seja, lesar o bem jurídico tutelado. Não basta querer restringir ou impedir o exercício dos poderes, mas é preciso que o meio escolhido seja idôneo para atingir a finalidade prevista no núcleo do tipo (o verbo). De outro modo, o crime é impossível.

O art. 359-M prevê a consumação do crime pela tentativa, quer dizer, tentar depor o governo constitui o tipo penal em comento. É preciso que as condutas configurem uma tentativa idônea de depor o governo. A mera vontade expressa em manifestações politicas não configuram um meio idôneo de tentar depor o governo. Nem questionar a legalidade do processo eleitoral, nem fomentar a dúvida sobre as eleições, nem invocar intervenção federal, nem implorar aos militares em portas de quartéis, nem destruir obras de arte ou mesmo invadir a sede do governo. Nenhum destes atos constitui qualquer meio capaz de depor qualquer governo.

E nem forçando muito da para dizer que uma manicure ou um funcionário publico que defecou em uma mesa do Palácio do Planalto tivessem o dolo de impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. O governo sequer foi ameaçado e os poderes constituídos continuaram atuando nesse tal Estado Democrático de Direito que vai muito bem, obrigada (espero que o leitor entenda a ironia).

Ora, mas poderia se falar em tentativa? Se nem idoneidade do meio se pode afirmar, quiçá a tentativa.

Para fazer a subsunção validamente, à luz da dogmática do Direito Penal burguês, é imprescindível que todos os elementos descritos no tipo penal estejam inequivocamente presentes, em outras palavras, para tentar engendrar um golpe de Estado, os atos preparatórios devem estar caracterizados, e estes atos devem ser idôneos, quer dizer capazes, de realizar o golpe de estado.
A dogmática penal não admite tipos abertos, nem pressupõe como válidos conceitos jurídicos indeterminados.

Agora, algum leitor menos atento vai dizer que o Bolsonaro planejou e é responsável por isso, e, ainda, que os militares estavam envolvidos. Mas para cada conduta há um tipo penal já previsto na legislação brasileira. Um Estado de Democrático de Direito não recorre ao Direito Penal para punir condutas políticas de seus cidadãos. As autoridades investidas nos poderes até respondem penalmente, mas nunca objetivamente. E se estes dispositivos forem considerados constitucionais por algum jurista, data maxima venia, o sistema de segurança falhou miseravelmente e cabeças do alto escalão e militares deveriam rolar. No entanto, estão intactas e ainda são consideradas (pasmem) como salvadoras da democracia. Além disso, é necessária a individualização das responsabilidades, mesmo que os fatos tenham sido cometidos por uma multidão. Cada um somente é responsável pelo seu próprio ato, na exata medida em que contribuiu para a consumação do delito. E não, nada disso foi feito pelo sistema penal. E a arbitrariedade foi aplaudida pela tal esquerda. Durma-se com um governo desses…

A situação é gravíssima

A dogmática do Direito burguês se sofisticou muito ao longo do tempo e da experiência. Mas Marx estava certo. E Lênin também. No Brasil, este arremedo de Direito burguês mal acabado por uma aristocracia anti-nacional não passa de uma cortina de fumaça para tentar legitimar a mais vil e perversa dominação.

É evidente que se trata de punir cidadãos comuns por atos políticos e assegurar que nenhum envolvido de alta patente ou do alto escalão seja punido por qualquer conduta comissiva ou omissiva. Nem precisa dizer que o PCO não compactua com isso. Nós não precisamos da extrema direita para instaurar um Estado fascista. Ele está aí, nas nossas barbas, disfarçado mal e porcamente de Estado Democrático de Direito, governado por uma esquerda que esquartejou Marx, ignorou Lênin e ainda prestigia o assassino de Trotsky.

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