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Coluna

Garantismo penal e crimes contra a liberdade sexual

"As garantias penais e processuais não podem, de nenhum modo e em nenhuma hipótese, mesmo quando se trata de uma caso de estupro, serem relativizadas"

Já falei nesta coluna sobre o garantismo penal. Trata-se de um rol de garantias constitucionais cujo escopo é limitar a atuação estatal na persecução penal. Não importa o desvalor da conduta, não importa a relevância do bem jurídico tutelado, não importa o potencial lesivo nem a lesividade do crime, TODOS têm o direito a um julgamento justo, porque ninguém pode ser processado nem julgado sem o devido processo legal. Em outras palavras, para que o sujeito seja condenado, é preciso que tenha sido inequivocamente provado o crime, isso importa em provar que o criminoso agiu livre e conscientemente para produzir o resultado lesivo.

A complexidade do tecnicismo jurídico normalmente serve, sobretudo, àqueles mais ricos que não conseguem se livrar de plano do aparelho de repressão estatal. Normalmente, eles gozam de todas as garantias penais e processuais penais previstas na Constituição da República e na legislação penal e processual penal. E também da legislação internacional. E pouca gente realmente se importa com o fato de que os pobres não gozam dos mesmos privilégios da burguesia e são encarcerados sem que o devido processo legal seja minimamente observado. Afinal, o devido processo legal é coisa de burguês. Explico.

O devido processo legal é uma garantia que se origina da Magna Carta inglesa de 1215, a Carta do João Sem Terra, destinada aos nobres para que observassem a lei da terra quando julgassem os conflitos entre os senhores feudais. A ideia era fazer com que o Rei, que era transitório, observasse a lei da terra, que é perene. Escrita em latim arcaico, inteligível apenas para o clero, a Carta dizia que ninguém poderia ser privado de sua liberdade nem de seus bens sem o devido processo legal. Daí seguiu-se a ideia de que o poder de estado deve estar limitado pela lei, que deve criada pelas próprias pessoas cuja vontade é submeter-se a ela mesma. E assim originou-se uma série de direitos e garantias que depois restaram escritas nas Cartas de Direitos que se seguiram na História. Quando a burguesia finalmente tomou o poder quase 500 anos depois, as garantias passaram a constar das Constituições. 

E continuou assim até os dias de hoje. As garantias constitucionais são asseguradas e observadas pela e para a burguesia, quando e como convém à burguesia. 

Exceto quando se trata do crime de estupro. A violação da liberdade sexual é assunto para lá de complexo e que gera uma infinidade de debates e reflexões que não podem ser ignoradas. Quando se trata de estupro, um crime tão odioso e repulsivo, o mais garantista dos garantistas vacila diante do caso concreto. É também um dos principais focos das teorias feministas do Direito que analisam o sistema de justiça penal.

Trata-se de um crime cuja persecução nem sempre leva necessariamente a evidências concretas de violência. E a violência sexual não necessariamente é uma violência real. Portanto, o crime é hediondo mesmo que não tenha havido morte ou lesão grave. Já houve divergência sobre este assunto na jurisprudência dos Tribunais Superiores. Na prática, a palavra da vítima tem uma relevância bem maior do que em outros crimes. Cuida-se da liberdade sexual daquele que se encontra em estado de vulnerabilidade e a hediondez do crime resulta da própria gravidade da conduta que viola a liberdade sexual de alguém. Daí majorar a pena, ser inafiançável, sem liberdade provisória e sem anistia, graça ou indulto. O regime da pena é integralmente fechado e o livramento condicional só pode ser concedido após o cumprimento de dois terços da pena. A resposta penal é sempre muito severa.

E quando a resposta penal visa, de algum modo, abrandar a incidência da lei, o entendimento que costuma prevalecer é que isso acabaria agravando a situação de vulnerabilidade da vítima. É quase irresistível para uma pessoa comum questionar sobre se a mulher tem parte da responsabilidade pelo crime de estupro. A ideia, então, seria condenar e apenar duramente aquele que considera a vítima como objeto sexual. E neste sentido, a exigência da lesão grave ou morte para caracterizar a hediondez acarretaria uma certa banalização do crime. 

A dificuldade de apuração do crime de estupro, por se tratar de uma esfera estritamente subjetiva e, portanto, privada, acarreta imprecisão dos dados científicos. As estatísticas são incompletas e os métodos nem sempre compatíveis com a realidade concreta. Trata-se de um grande desafio para pesquisadores, que muitas vezes trabalham com dados parciais. Além disso, é dado que a mulher vítima de violência sexual, é, em geral, discriminada pelo próprio sistema de justiça penal. E daí outra questão que aflige os pesquisadores: a sociedade machista. O sistema penal deveria, neste sentido, operar para combater a cultura machista. Disso decorre, por sua vez, que o Direito encontra limites intransponíveis para combater determinada característica cultural e o seu caráter pedagógico não atua sobre as relações sociais. O crime e suas consequências jurídico-penais acabam servindo de mote para lutas de classes.

Mas toda a discussão sobre o uso da máquina de repressão estatal para satisfação de determinados interesses fica em segundo plano quando se trata de violação da liberdade sexual da mulher. Pela vulnerabilidade física e psíquica decorrente de sua vulnerabilidade social, a mulher está constantemente exposta a este tipo de violência. Seja na alta burguesia ou na classe mais pobre, a liberdade sexual da mulher é assunto que não se contenta com qualquer análise, por mais abalizada que seja, por mais coerente que seja. Estupro é algo repulsivo e constante demais para se contentar com uma explicação sob um determinado viés.

Veja-se o caso Robinho. A imprensa, como quase sempre, confunde mais que esclarece. O tal estupro coletivo a que se referem os jornais, o que acaba gerando uma discussão inócua, não é um tipo penal, diga-se, vez que a conduta criminosa é individual. No entanto, assim como outros crimes, o estupro pode ser cometido em co-autoria e participação, uma vez que este crime engloba atos diversos da conjunção carnal, ou seja, qualquer ato de natureza sexual ou lasciva. Para bom entendedor, basta. 

Decerto que este é um caso que também passa por questões políticas, no entanto, enquanto em qualquer caso semelhante poderia ater-se somente aos demais aspectos e ignorar a complexidade do crime em questão, em se tratando de estupro, o buraco fica bem mais embaixo. E por esta mesma razão, é que se deve lembrar que as garantias penais e processuais não podem, de nenhum modo e em nenhuma hipótese, mesmo quando se trata de uma caso de estupro, serem relativizadas.

Nestes tempos sombrios, o melhor que o Direito burguês tem a nos oferecer deve ser aproveitado. Por mais que nossa repulsa seja legítima.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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