No final do ano passado, a Fuvest, que organiza o vestibular para ingresso na USP, apresentou sua nova lista de livros para os próximos três anos, inovando no critério de escolha: autoras mulheres, ou, no jargão identitário, o “gênero”. A lista gerou debate nos meios interessados, com artigos a favor e contra a “inovação” da Fuvest.
Nessa segunda-feira (15), um artigo de Rodrigo Casarin publicado no UOL/Folha de S. Paulo trouxe à tona novamente o debate. A matéria, chamada Calma, não deixaremos de ler Machado só por causa da lista da Fuvest defende a nova lista.
O autor afirma que “uma choradeira me deixou encucado: a de que pessoas não leriam mais um Machado de Assis ou um Lima Barreto simplesmente porque esses autores ficaram de fora da lista do vestibular”.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o argumento central do texto não é correto. O principal problema apontado pela maior parte dos que criticaram a nova lista não é se as pessoas vão ler ou deixar de ler Machado de Assis, Lima Barreto ou quem quer que seja. Ao colocar o problema nesses termos, o colunista ignora um problema fundamental que é a educação.
O vestibular sequer deveria existir enquanto instituição. O acesso à universidade pública deveria ser livre e universal, um direito de todos. A existência de um método de seleção por si só já transforma a universidade numa instituição burocrática, ou seja, em que apenas uma pequena casta da sociedade pode ingressar.
Nesse sentido, quando falamos de uma lista apresentada pelo principal vestibular do País, estamos falando que essa instituição está ditando quais devem ser os livros a serem estudados pelos alunos do ensino fundamental e médio.
A principal discussão, portanto, não é saber quais autores as pessoas vão ler, mas qual a política educacional que essa instituição quer para a educação brasileira. Como instituição, ela tem forças para impor essa política. Ela está dizendo para as escolas: estudem X, não estudem Y.
Para justificar seu argumento, o colunista utiliza uma tirada: “Se alguém só lê um Graciliano Ramos, para pegar outro nomão, a fim de sacar qual é a resposta certa numa determinada questão de alguma prova, estamos muito mal. E estamos mesmo muito mal. Muita gente encara a leitura dessa forma: uma obrigação enfadonha para, quem sabe, tirar uma nota legal”.
É fato que muita gente encara a leitura assim. Isso porque – concordamos com o colunista – estamos muito mal. E estamos assim, com as pessoas encarando a leitura como uma obrigação enfadonha, justamente por nossas instituições ligadas aos ensino serem burocráticas.
Mas o autor não propõe mudar essas instituições. Ele mesmo não parece crer que a mudança da lista da Fuvest vai mudar essa questão. O problema será o mesmo, mas com livros diferentes.
Na verdade, o anúncio da Fuvest revelou que o problema nunca foi tão grave quanto agora. A instituição está cada vez mais burocrática. Seus critérios são os critérios ideológicos da burguesia pró-imperialista. Não à toa, a imprensa pró-imperialista aplaudiu a medida. A moda agora é a demagogia identitária, e ai de quem falar mal.
Permita-nos, ainda, suspeitar das meras intenções comerciais da manobra. A onda identitária não está apenas na Fuvest, mas no mercado editorial. “A Fuvest pede, eu vendo mais”, eis a lógica que não podemos deixar de mencionar aqui para não corrermos o risco de fazer papel de trouxa. Os clássicos da literatura brasileira e portuguesa estão aos montes em sebos e livrarias. Com cinco ou 10 reais, o estudante pode comprar um romance de Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, José de Alencar e a lista segue. Já não é esse o caso da maioria das escritoras da nova lista da Fuvest, um prato cheio para que as grandes editoras criem novas edições, há inclusive autoras ainda vivas, como é o caso de Conceição Evaristo, em alta nas páginas da imprensa burguesa nacional e que apareceu nessa mesma imprensa legislando em causa própria.
A Fuvest e, por consequência, a USP, estão obedecendo a imposições ideológicas que vêm de fora. Não que a universidade não obedeça aos interesses da classe dominante, mas a impressão que se tem é que a coisa piorou, e muito. E quanto mais dominada por esses interesses, mais burocrática é mais decadente é a universidade. A nova lista da Fuvest é o retrato disso tudo.
Dizer que a preocupação é apresentar aos estudantes novas escritoras é falso. Para se apresentar novos escritores, é preciso uma educação que de fato seja ampla, que favorece a busca, e mais: que a produção literária seja a mais democrática possível. A Fuvest, por si só, é o oposto de tudo isso: é uma instituição anti-democrática e burocrática.
E mesmo se tal preocupação fosse legítima, ainda assim, a obrigação da Fuvest e da USP seria zelar para que os estudantes e futuros universitários conhecessem os clássicos de nossa literatura.
Apesar de não ser o essencial do debate, também é falsa a argumentação de que as pessoas não deixarão de ler Machado ou Lima Barreto. Como instituição que dita os rumos de boa parte da educação, a Fuvest deu um passo no sentido de esconder esses autores essenciais para a formação de nossa nacionalidade. Se muitos brasileiros ficaram traumatizados pela forma burocrática de ensinar Machado de Assis, muitos também passaram a amar esse autor graças ao primeiro contato com ele na escola.
O que a Fuvest está fazendo com essa nova lista é afastar uma geração de brasileiros desses autores.