É difícil defender o governo de Bashar al-Assad. Os erros, inerentes ao nacionalismo, foram muitos e o regime político, em grande medida uma peça de museu na Ásia Ocidental, caiu de forma catastrófica. Ainda assim, seu papel no eixo da resistência era fundamental, ligando o Irã ao Hesbolá no Líbano e à resistência palesinta, liderada pelo Hamas, na Palestina. Não por acaso esse, que era o elo mais fraco do bloco que enfrenta o sionismo na região, foi acometido por um golpe fulminante claramente organizado pelo imperialismo.
Essa, porém, não é a visão de nossos companheiros da Resistência, corrente interna do Partido Socialismo e Liberdade (Psol). Em artigo publicado no último dia 19 no portal Esqueda Online, Ge Souza, acompanhada de dois articulistas portugueses, defenderam a tradicional tese da esquerda pequeno burguesa: viva a vitória das massas contra o velho regime autocrático, nenhum apoio ao novo regime autocrático. A solução é a tradicional “organização das massas” num “movimento independente dos trabalhadores e do povo pobre pela sua emancipação”, mas, enquanto isso não acontece, parece que teremos que nos contentar com o governo do HTS liderado pelo guerrilheiro fundamentalista Abu Mohammed Al-Golani.
O artigo em seu título já pede desculpas: “Notas para uma posição inicial sobre a Síria”. No primeiro parágrafo, prepara o leitor: “a natureza, quase sempre reacionária, das organizações protagonistas, aconselha cautela”. Ao lermos o restante da matéria, somos obrigados a considerar que a posição “inicial” e a “cautela” servem como apólices de seguro ao apanhado de conclusões e especulações que não se sustentam de forma alguma sobre a realidade e, por isso, têm prazo de validade extremamente curto. Já vimos isso este ano, quando as “massas” em Bangladesh se levantaram contra um regime corrupto apenas para apontarem como novo líder um banqueiro recipiente do Prêmio Nobel.
Comecemos pelos pontos de acordo:
“A economia da Síria depende do setor petrolífero, que corresponde a 40% das receitas de exportação do país, e do setor agrícola, que representa 20% do PIB e 20% do mercado de trabalho. Com o início da guerra civil em 2011, a economia síria passou a depender das linhas de crédito do Irã, que investiu de 6 a 20 bilhões de dólares por ano no país, mas também dos investimentos da Rússia (principalmente com armamentos), e da China. A guerra na Ucrânia, e os enfrentamentos com Israel pelo Irã, acabaram enfraquecendo a ajuda vinda desses países, aumentando a crise econômica, em uma economia enfraquecida por sanções econômicas impostas pelos EUA e a União Europeia, e pelo longo período de guerra civil. Esse é um dos motivos que contribuiu para a queda de Assad.”
De fato, as sanções, como em diversos países ao redor do mundo, asfixiaram uma Síria assolada por uma guerra civil muito destrutiva. As sanções da Lei Cesar, de 2019, compuseram o maior embargo econômico imposto no século XXI, apenas comparável ao de Cuba, realizado após a Revolução Cubana. Somente esse elemento já seria suficiente para um olhar crítico ao governo de Assad. Por que o imperialismo almejava tanto sua destruição?
Os articulistas contém sua empolgação. Se a primavera árabe em 2011 representou na Síria “um genuíno movimento revolucionário”, a queda de Assad não é sua continuidade. “É preciso acompanhar o desenvolvimento da situação e principalmente observar o papel que o povo sírio vai desempenhar neste nova realidade do país”.
Acontece que a situação se desenvolve e “Israel” bombardeia incessantemente o país (algo que já acontecia, ainda que com menos intensidade, durante o governo de Assad) e já planeja ocupar uma porção significativa de seu território. Golani, que de terrorista degolador transformou-se em herói das massas, já anunciou que não planeja atacar os isralenses (e, diga-se de passagem, ajudar a resistência palestina). Os Estados Unidos continuam ocupando um terço do território sírio e a Turquia se movimenta para esmagar os movimentos curdos patrocinados pelo imperialismo no noroeste do país. Que papel o povo sírio poderá desempenhar num cenário em que o próprio país, a própria ideia de um povo sírio, está sob ameaça?
“A tortura, as perseguições, as prisões e os assassinatos por motivos políticos, as violações dos direitos humanos, os ataques aos direitos das mulheres, eram uma constante na dinastia dos Assad”, dizem os revolucionistas. Mas será diferente sob Golani, sob ocupação sionista, turca ou norte-americana? Um país balcanizado poderá melhorar as condições de vida de seus habitantes? Sugerimos que perguntem aos iugoslavos.
“Independentemente da posição tida face aos grupos armados que derrubaram Assad, nos juntamos a estas celebrações: a possibilidade de regresso de milhões de refugiados, a recusa das tropas de Assad em defender o regime sanguinário e a libertação dos presos políticos são motivos de alegria para o povo sírio e para todos aqueles que estejam do seu lado.”
É notório que o governo de Assad era impopular. Finalmente, havia pessoas que passaram mais de quatro décadas de suas vidas presas. Ainda assim, atribui-se os milhões de refugiados à perseguição política? Ou seriam as condições de vida terríveis sob sanções imperialistas, em meio a uma guerra civil com participação de praticamente todos os países imperialistas? Não entendemos como esses milhões de refugiados retornaram para uma Síria que continua sendo bombardeada, que continua pobre.
O texto diz que o HTS foi “recebido com apreensão por todas as potências imperialistas” o que achamos curioso dado o espaço oferecido a Golani nos principais meios de comunicação burgueses. Incluem na lista dos imperialistas a Rússia, o que talvez explique a festividade em torno da derrubada de Assad.
“Por hora, não esperamos da parte desta direção política qualquer iniciativa anti-imperialista, seja contra os interesses estadunidenses e sionistas, seja contra a ingerência russa ou iraniana.” Suspeitamos que talvez algo já tenha sido feito contra a “ingerência” iraniana, dadas as dificuldades enfrentadas pela resistência contra “Israel” no Líbano e na Palestina, mas não deixa de ser curioso a equiparação das “ingerências”.
Mais adiante somos introduzidos à ideia de “potências imperialistas, globais ou regionais”. Sim, o imperialismo, a ditadura mundial dos monopólios, aparentemente é composto de potências regionais. Todas essas potências foram “apanhadas de surpresa” pela queda de Assad. Ao lado do “imperialismo regional”, a tese da surpresa, com jornalistas da CNN plantados no local para forjar gravações e entrevistar os heróis, é muito difícil de sustentar.
De qualquer maneira, a Resistência quer o “fora todos”: “Exigimos a todos, aos EUA, UE, Israel e Rússia, em primeiro lugar, mas também à Turquia e ao Irã: mãos fora da Síria!” Estão muito preocupados com o “sub-imperialismo turco”…
Finalmente, são obrigados a manipular os fatos. Recorrem ao Hamas para chancelar sua posição reacionária, alegando que a organização palestina “congratulou o povo sírio pela queda de Assad”. A nota não menciona o nome de Assad, apesar de parabenizar o povo sírio, mas afirma “a unidade da Síria e a integridade de seus territórios, e o respeito ao povo sírio, sua vontade, independência e escolhas políticas.” A Resistência, por outro lado, sabe o que é melhor para os sírios:
“[…] não temos qualquer esperança que nenhum governo burguês, islâmico ou nacionalista, nenhum bloco imperialista ou sub-imperialista possa cumprir esse papel. Não será o arranjo de forças entre o chamado ‘eixo da resistência’, um bloco subordinado ao sub-imperialismo iraniano, que cumprirá um papel libertador, muito menos o imperialismo estadunidense, europeu, russo ou chinês.”
Não será nenhum desses setores, será o povo sírio que, certamente não é burguês, mas que também não é islâmico, nem nacionalista. Um povo sírio marxista, de preferência, que só existe na cabeça de nossos autores. Dado que esse povo ideal não existe na realidade, igualando todas as forças “imperialistas”, vemos o verdadeiro lado da Resistência, o imperialismo.