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Coluna

EUA: resultado eleitoral é sintoma do tamanho da crise do império

"A tendência é de um agravamento da crise"

A vitória acachapante, sob todos os ângulos, de Donald Trump nas eleições norte-americanas, é uma face da gradual e contínua desagregação dos regimes imperialistas chamados “democráticos” e, por tabela, das forças ligadas a ele em todo o mundo. Trump, além de ter vencido nos estados decisivos para o resultado eleitoral, venceu também no voto popular. É inegável que a extrema direita conquistou uma parcela majoritária da opinião pública norte-americana e esse fenômeno terá impacto político no mundo todo, em função do peso político e econômico dos EUA no globo. Contribuiu decisivamente para a derrota de Kamala Harris, registre-se, a “ação democrática” do governo Joe Biden no apoio e patrocínio do massacre de crianças e mulheres na Faixa de Gaza. 

A vitória de Trump nos EUA é um sintoma daquela que é, possivelmente, a maior crise política do imperialismo na história. A falência completa do Partido Democrata nesse processo eleitoral representa uma crise sem precedentes na própria política de dominação do imperialismo. Reflete uma inusitada perda de controle político por parte do império, fruto da própria crise econômica vigente. A vitória do Trump significa, para o imperialismo, um verdadeiro transtorno em sua política, dentro e fora dos EUA. 

Exemplifico a afirmação anterior com o problema da guerra na Ucrânia. Os EUA precisam desesperadamente impor uma derrota total à Rússia, militar e economicamente para, em seguida, ir para cima da China, considerado o grande inimigo a ser derrotado no aspecto econômico. No primeiro discurso após eleito, realizado ainda na madrugada do dia 06.11, Donald Trump reiterou a afirmação feita várias vezes antes, de que será o político que acabará com as guerras que os EUA estão provocando ao redor do mundo: “Disseram que eu começaria uma guerra. Mas eu não vou começar nenhuma guerra. Eu vou pôr fim a guerras”. Alguns cálculos concluíram que o apoio financeiro dos EUA à Ucrânia é superior a US$ 84 bilhões, sem contar os recentes conjuntos de armamentos fornecidos ao governo Zelensky, que alcançam algo em torno de US$ 8,9 bilhões. 

Claramente, a posição de Trump em relação às guerras, especialmente a da Ucrânia, teve influência decisiva nas eleições norte-americanas. Trump já qualificou Zelensky, mais de uma vez, como o “melhor vendedor entre os políticos, de toda a história”, porque sempre que se reúne com Joe Biden, consegue bilhões de dólares para financiar a guerra. Segundo Trump, “isso nunca acaba”.  O presidente eleito dos EUA também ataca com frequência os países da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que, na sua interpretação, não cumprem com as diretrizes de gastos da organização. 

Donald Trump não era o candidato apoiado pelo imperialismo, porque defende propostas que não são aquelas defendidas pelos grandes monopólios que dominam a economia mundial. Portanto, em boa medida, se o governo Trump conseguir cumprir suas promessas (o que não será fácil), ele tende a aprofundar enormemente a crise do imperialismo, ou seja, ele tende a agravar os problemas que o imperialismo enfrenta. Por exemplo, se cumprir sua promessa de acabar com a guerra na Ucrânia, cuja continuidade parece estar no centro da estratégia do imperialismo. Mas é ilusão também achar que o governo Trump terá liberdade total para exercer suas políticas reformistas. Certamente ele será bastante obstaculizado. 

A vitória eleitoral de Trump acontece em uma conjuntura na qual se agravou o problema da erosão da influência norte-americana no mundo e a simultânea elevação da influência global do Brics, que em Kazan, no mês de outubro ampliou o bloco. Por exemplo, em junho a Arábia Saudita anunciou que não irá renovar o acordo dos petrodólares, assinado com os EUA em 1974. Por esse acordo, que já tinha meio século, o governo de Riad passou a exigir dos compradores que suas exportações de petróleo fossem pagas em dólares norte-americanos, ao mesmo tempo que investia as receitas em papéis do tesouro dos EUA. O acordo, na prática, definiu que o dólar passava a ser a moeda oficial dos negócios com petróleo, o que garantiu a hegemonia dessa moeda no mundo, reforçando assim, enormemente, o domínio financeiro dos EUA. 

O acordo possibilitou também uma grande atratividade aos títulos do tesouro norte-americano, na medida em que estabeleceu na prática um “mercado cativo” para eles. Foi um acerto realmente poderoso, pois envolveu o país que detém a segunda maior reserva de petróleo da terra, localizado em região estratégica em termos geopolíticos, e, ao mesmo tempo, envolveu a principal commodity da economia mundial (se retirarmos a água dessa condição).

Com o acordo, os países exportadores de petróleo dependiam totalmente do dólar para realizar seus negócios. No caso dos importadores, além dos gastos com compra de petróleo, tinham que manter sempre uma paridade razoável entre sua moeda e o dólar, para não pagar mais pelo petróleo, em moeda nacional. Com o fim do petrodólar, abre-se a possibilidade de os países importadores e exportadores utilizarem outras moedas, não ficando diretamente à mercê da ditadura do dólar.  A decisão anunciada pelo governo saudita não é uma decisão isolada sobre petrodólares, mas trata-se de uma mudança de política monetária. Por exemplo, a Arábia Saudita está participante de um projeto de moeda digital, coordenado pelo banco central da China, que envolve outros países como, Hong Kong, Tailândia e Emirados Árabes Unidos. 

Uma das razões para a decisão do governo saudita é o comércio cada vez mais significativo com países como China, Índia, Japão e Rússia, que apostam numa maior independência em relação ao dólar. Mesmo no caso do Japão, que é um país imperialista, altamente dependente e próximo dos EUA. Ou seja, nesse quadro de aproximação comercial e política com países da Ásia, o acordo em torno de petrodólares perdeu o sentido para a Arábia Saudita. 

Um dos projetos centrais dos países que constituem o Brics é substituir o dólar como moeda das transações realizadas dentro do bloco. China e Rússia já estão comercializando em suas moedas nacionais. A decisão da Arábia Saudita deve ser compreendida em um contexto de grave crise do imperialismo mundial. Os sintomas desse fenômeno estão por toda parte: derrota humilhante dos EUA no Afeganistão em 2021; atual operação militar russa na Ucrânia; golpes militares anti-imperialistas na África; massacre dos palestinos na Faixa de Gaza (patrocinado política e financeiramente pelo governo dos EUA). 

Há uma evidente crise do imperialismo, com uma escalada da guerra ao nível internacional, que tende a piorar nos próximos anos. OS EUA, verdadeira máquina de guerra, acuado, tende a ser tornar ainda mais agressivo. O orçamento militar dos EUA para este ano é de US$ 886 bilhões. A Rússia, que está ganhando a guerra dos na Ucrânia com relativa facilidade, tem um orçamento de defesa equivalente a 12,64% do orçamento dos EUA. O orçamento dos EUA  para a defesa é superior ao acumulado dos dez gastos seguintes no ranking dos maiores orçamentos de defesa dos países. Se Donald Trump cumprir sua promessa de campanha, e acabar com a guerra da Ucrânia, estará afetando diretamente o lucro dos monopólios diretamente envolvidos com a máquina de guerra. 

O voluntarismo reformista de Trump terá que enfrentar a crise financeira dos EUA. A dívida pública dos Estados Unidos está em US$ 34,62 trilhões, conforme os dados divulgados em abril último. A dívida corresponde a 124,7% do PIB norte-americano. Quase US$ 2 bilhões são gastos diariamente apenas em juros da dívida nacional. Mesmo para o país mais rico da Terra, é muito difícil pagar, infinitamente, uma dívida que equivale a quase 125% do seu PIB. O país que sustenta a máquina de guerra mais cara do planeta (não necessariamente a mais eficiente), compromete mais de 30% de sua receita tributária federal com o pagamento de juros. O que permite financiar a dívida é a demanda por dólares existente no mundo. Mas essa demanda tende a diminuir porque os países estão procurando reduzir sua dependência do dólar. Além do que, com a perda de influência dos EUA no mundo, tudo indica que os países não irão financiar infinitamente a dívida norte-americana. 

O problema da dívida pública, que está no centro dos problemas dos EUA, é extremamente complexo. Quem manda no país ganha muito dinheiro com essa roda gigante especulativa: os bancos, grandes empresas, os ricos em geral. Ou seja, 0,5% da população, em prejuízo de 99,5% dos norte-americanos (é como no Brasil). Essa elite, majoritariamente, apoiou a candidata do Partido Democrata. Trump é apoiado por setores da burguesia norte-americana que também estão sendo prejudicados pela máquina de guerra e pela dívida pública. A pobreza nos Estados Unidos, atinge cerca de 12% da população. Essa mesma economia, dominada pelo capital financeiro, precisa importar trabalhadores da América Latina para operar na economia real (fábricas, serviços em geral, limpeza, construção civil). 

Para o governo dos EUA conseguir rolar a dívida, a demanda global por dólares e por títulos de dívida dos EUA deve se expandir permanentemente. Resultado que tem sido conseguido, até aqui, pelo argumento da força. Esse verdadeiro castelo de cartas se mantém porque os EUA têm o poder da senhoriagem, ou seja, pode imprimir, sem custo, uma moeda com aceitação e curso internacional. Nenhum outro país no mundo tem essa possibilidade e é exatamente isso que está se esfarelando. 

O maior golpe econômico desferido contra os interesses norte-americanos está na área financeira: a substituição do dólar por moedas locais nos países do Brics, nas atividades financeiras internacionais. Processo que já iniciou. Isso irá atingir em cheio o poderio do império americano e mundial, em boa parte assentado na hegemonia do dólar, que fornece aos EUA um privilégio extraordinário. 

A hegemonia do dólar já tem quase 80 anos, vem desde os Acordos de Bretton Woods, feitos em 1944. Em boa parte, a dominação imperialista se dá sobre essa hegemonia da moeda. Quando os líderes do Brics mencionam substituir o dólar pelas moedas nacionais, ou por uma futura moeda do bloco, significa quase uma ameaça de morte para o imperialismo, porque boa parte do poderio norte-americano está assentado sobre o privilégio de sua moeda nacional ser a moeda de curso mundial nas transações econômicas. 

A decisão da Arábia Saudita em relação à não renovação do acordo de Petrodólares, está dentro deste quadro mais geral de crise política, social e financeira do imperialismo em geral, e do império norte-americano, em particular. A Arábia Saudita e outros importantes produtores de petróleo, percebendo as mudanças na ordem internacional, estão diversificando o seu comércio, reduzindo o peso do dólar norte-americano na sua carteira de ativos. Esse movimento, dentro de um quadro mais geral, de influência dos EUA no mundo, reduz a importância do dólar na economia global. 

Com a decisão, a Arábia Saudita poderá aceitar outras moedas importantes como pagamento das suas exportações de petróleo. A previsão é que todos os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) sigam o exemplo da Arábia Saudita, com consequências só previsíveis em parte, para a influência do dólar do mundo. A estratégia de Joe Biden vinha tentando reverter a crise com frentes de guerra por procuração, tentando impingir uma derrota completa à Rússia na Ucrânia. O centro da estratégia de Trump, pelo que se pode concluir das declarações, será a priorização da economia para combater os países concorrentes, especialmente a China. Não se sabe as consequências disso, já que a indústria norte-americana depende fortemente de insumos fornecidos pelos países asiáticos. De qualquer forma, a tendência é de um agravamento da crise.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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