Em coluna publicada no Brasil 247, o jornalista Moisés Mendes indica que o presidente do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, estaria prestes a se livrar do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, filiado à legenda desde 2021. O texto, intitulado Valdemar tocou o apito: saiam de perto de Bolsonaro, se baseia em um trecho de uma entrevista de vídeo do presidente do PL ao jornal O Diário, de Mogi das Cruzes, em que Valdemar Costa Neto chama o presidente Lula de “um camarada do povo” e afirma que Bolsonaro, por sua vez, teria “carisma”.
Moisés Mendes, que ou assistiu apenas aos dois minutos do trecho em questão ou decidiu ignorar por completo o restante da entrevista, conclui então que: “ao colocar Lula e Bolsonaro frente a frente, para comparações, e dizer que Bolsonaro tem carisma e que Lula é um camarada do povo, Valdemar fez uma das melhores resenhas do ano. O presidente do PL disse que Lula está vivo e que a Bolsonaro sobrou o que ele chama de carisma. Valdemar instalou as bananas de dinamite para implodir Bolsonaro“.
Para o articulista do Brasil 247, portanto, o presidente do PL teria, na entrevista a O Diário, indicado que Bolsonaro, o maior trunfo eleitoral de seu partido, estaria em um processo de falência política. Ao dizer que “carisma” é o que “restou” de Bolsonaro, Moisés Mendes quer dizer que o ex-presidente não teria mais validade no que diz respeito ao seu capital político. Tal ideia fica clara nos seguintes trechos:
“Chamar um político de carismático é entregar-lhe um prêmio de consolação, tipo miss simpatia da extrema direita. E carisma, numa hora dessas, logo depois de duas derrotas, na eleição e na tentativa de golpe, valem tanto quanto os adjetivos do século 19 que enfeitam os editoriais do Estadão em defesa do fascismo […] Valdemar está explicitando o descarte de Bolsonaro e começando a reaproximação com Lula.”
Suponhamos, em primeiro lugar, que a interpretação de Moisés Mendes da entrevista seja a realidade. Isto é, que Valdemar Costa Neto estaria decidido a expulsar Bolsonaro de suas fileiras. Seria isso motivo de comemoração?
Ora, essa não seria a primeira vez que Bolsonaro sairia de um partido político. Pelo contrário: Bolsonaro já foi filiado a outros oito partidos: PDC, PPR, PPB, PTB, PFL, PP, PSC e PSL. No PSL, inclusive, Bolsonaro foi praticamente expulso da legenda quando já era presidente da República. E o que aconteceu então? O ex-presidente encontrou outra legenda para sair candidato e obteve uma votação ainda maior que em 2018.
A saída de Bolsonaro de um partido não significaria absolutamente nada, ainda mais levando-se em conta que o PL não é um verdadeiro partido de extrema direita, é uma legenda que aceitou a filiação de Bolsonaro e seus apoiadores. Valdemar Costa Neto não é um dirigente da extrema direita que estaria em contradição com Bolsonaro, é meramente um burocrata que responde a interesses fisiológicos do partido.
De um ponto de vista concreto, uma eventual saída de Bolsonaro do PL não causaria um impacto no bolsonarismo enquanto fenômeno. Ainda que causasse, a análise de Moisés Mendes desperta, ainda, uma segunda preocupação: se a esquerda considera que o isolamento de Bolsonaro em seu próprio partido seria uma vitória contra o bolsonarismo, ela está, na prática, terceirizando a luta contra o bolsonarismo para os seus adversários políticos.
Não seria, de longe, a primeira vez. Nos últimos anos, tornou-se comum que setores da esquerda nacional, incapaz de analisar as contradições de classe entre o bolsonarismo e o conjunto da burguesia, delegou o papel de combater a extrema direita à direita “tradicional”. É o caso, por exemplo, do apoio de setores da direita ao Supremo Tribunal Federal (STF) na perseguição de figuras secundárias do bolsonarismo, e foi o caso, durante o ano de 2022, do apoio dos mesmos setores à candidaturas da “terceira via”, como Eduardo Leite (PSDB-RS), em nome de uma suposta luta contra o “fascismo”. Ao fazê-lo, tais setores decretaram a sua completa nulidade política: para que, afinal, constituir um partido se sua atuação se resumiria a incentivar as iniciativas políticas da burguesia?
O pior de tudo é que a interpretação de Moisés Mendes é, acima de tudo, uma fraude. O articulista se baseia em uma fala isolada de Valdemar Costa Neto e não explica exatamente em que circunstâncias ela ocorreu. Vejamos, então, o que disse Valdemar Costa Neto na entrevista:
“Não tem comparação. O Lula é um camarada do povo. O Lula é completamente diferente do Bolsonaro. Completamente diferente, e é um fenômeno, porque chegar onde ele chegou… Ele foi bem no governo também, e elegeu a Dilma depois. É completamente diferente o Lula do Bolsonaro.”
É no mínimo infantil, da parte de Moisés Mendes, acreditar que um mero elogio de Valdemar Costa Neto a Lula seja o suficiente para considerar que o presidente do PL estaria buscando uma “reaproximação” com o presidente da República. Fosse assim, como Moisés Mendes explicaria que Valdemar Costa Neto pediu desculpas publicamente após a repercussão do vídeo?
“Estão me atacando usando uma fala minha sobre o Lula que está fora de contexto. A esses, deixo um recado: quem não tem lealdade e fidelidade, tem vida curta na política. Sou leal ao Bolsonaro e fiel aos meus princípios. Quem me conhece que minha palavra não faz curva”, afirmou o presidente do PL em seu perfil no X (antigo Twitter).
Qual seria, então, o “contexto” que Valdemar Costa Neto alega? Ora, basta assistir à entrevista. O entrevistador vinha perguntando ao presidente do PL sobre a personalidade de Bolsonaro, o que, conforme a própria campanha da imprensa burguesa contra o ex-presidente alega, é um aspecto que se destaca em sua figura. O presidente do PL, no entanto, em nenhum momento afirmou que a personalidade de Bolsonaro era um problema em si: a todo momento, ele insistiu que Bolsonaro era “diferente” e que, portanto, era necessário saber como abordá-lo. Valdemar Costa Neto, inclusive, explicou que Bolsonaro agia de maneira diferente porque seria uma pessoa de grande “prestígio”:
“O pessoal briga com ele porque ele é um fenômeno, com popularidade. É um camarada de difícil, ele é um camarada diferente da gente, não é uma pessoa igual a nenhuma pessoa dessas pessoas que estão aqui. Ele é diferente, o Bolsonaro é um camarada que não é normal. Ele é um camarada de prestígio, que bomba em todo lugar.”
A comparação, portanto, era uma mera comparação entre as diferentes personalidades entre duas figuras de destaque na política nacional. Não era objetivo de Valdemar Costa Neto, portanto, demonstrar qualquer predileção por Lula. Ele, inclusive, durante a entrevista, deixou muito claro que era “de direita” e que só apoiou Lula no passado porque o finado José Alencar, que era filiado ao seu partido, era o vice de Lula.
Moisés Mendes poderia argumentar, no entanto, que as críticas à personalidade de Bolsonaro seriam um mero disfarce, um jogo político do presidente do PL para “dar o recado” de que estaria se afastando de Bolsonaro. Afinal, segundo o articulista do Brasil 247, “há muito tempo, Bolsonaro parece estar valendo no máximo um PIX de R$ 15. Valdemar sabe que a melhor tática para o PL e para a maioria do centrão hoje é desfazer as rodinhas de conversa assim que Bolsonaro se aproximar”.
Mas o que Valdemar Costa Neto afirma na entrevista? O presidente do PL afirma, por exemplo, que pretende eleger mil prefeitos em 2024 – uma quantidade de prefeitos superior à que o PSD, partido com maior número de chefes do executivo municipal, detém. Esse número, inclusive, seria uma meta “modesta”, uma vez que, para Valdemar Costa Neto, seria possível alcançar 1.200 prefeitos eleitos.
E qual seria o grande trunfo de Valdemar Costa Neto para conseguir esse feito? Como ele pretende ter nas mãos 20% de todas as prefeituras do País? Será que seria fazendo campanha contra Bolsonaro? Ele responde claramente:
“Eu sou grato a ele porque o que ele fez pelo nosso partido, fez pelos nossos parceiros lá […] Ele foi o mais votado em todas as cidades de São Paulo, ele só perdeu na capital, em que a tendência é mais à esquerda, então todo mundo quer o apoio dele porque 99% das cidades não tem segundo turno e ele decide a eleição aonde não tem segundo turno. Por quê? Porque, se tem cinco candidatos, divide [os votos] e dá 20% para cada um, o outro 18 ele com os 20 a 30% que ele dá para um candidato, ele elege o cara.”
Valdemar Costa Neto, portanto, não apenas não parece interessado em “implodir” Bolsonaro, como alega Moisés Mendes, mas sim utilizá-lo como grande trunfo político nas eleições municipais.
Em outro momento da entrevista, o presidente do PL, de maneira bem humorada, explica como a sua “crítica” à personalidade de Bolsonaro não era uma tentativa de constrangê-lo a sair do partido, mas sim uma demonstração de que, no que dependesse dele, Bolsonaro seria utilizado ainda mais como cabo eleitoral:
“Eu ando falando para o Bolsonaro: ‘Bolsonaro, vamos ter que fretar um jato para você correr nos municípios’. Jato e helicóptero, porque a eleição são só 60 dias e, com o registro ainda, vai sobrar 45 dias, pois o cara tem que se registrar e tudo mais. Quantas cidades ele vai visitar? Ele falou: ‘não, só vou de avião de carreira, eu não vou andar em avião em jato’, porque ele tem medo de sabotagem, essas coisas. Eu falei: ‘Bolsonaro, você vai visitar 50 cidades, 60 cidades, enquanto você pode fazer 150’ […] Nossa ideia é ele ficar de um a dois dias em Brasília, um dia e meio em Brasília, só gravando para todo o País. Todo lugar que ele não vai, ele grava, o cara fica com a mensagem e põe na Internet e tudo mais. Agora, tem as grandes cidades que ele tem que visitar.”
O que importa neste caso, no entanto, não é estabelecer o que Valdemar Costa Neto disse ou não, mas sim demonstrar a completa desorientação de um setor da esquerda brasileira diante do problema do bolsonarismo. Moisés Mendes só considera que Valdemar Costa Neto estaria prestes a se livrar de Bolsonaro porque avalia que é possível que o bolsonarismo “morra” por conta própria. Isto é, que é um fenômeno que não precisa ser combatido pela esquerda, uma vez que já estaria sendo combatido pelas instituições e pelo seu próprio partido.
Para entender que essa política levará a um desastre absoluto, basta observar o que acontece hoje nos Estados Unidos. Donald Trump vem sendo perseguido pelo Judiciário – já são dezenas de processes contra ele, em diferentes estados -, estando ameaçado de ser preso. O próprio ex-presidente norte-americano, inclusive, também foi sabotado por setores do próprio partido, que tentaram viabilizar uma pré-candidatura que concorresse com a sua. Nada disso tem causado efeito. Pelo contrário: conforme as recentes prévias em Iowa demonstraram, Trump segue cada vez mais popular, alcançando índices eleitorais semelhantes aos de um presidente em exercício.




