O fracasso eleitoral da esquerda nas eleições municipais está sendo aproveitado pela direita tradicional (PSDB e afins) para os fins mais inescrupulosos possíveis. Com a tentativa de enganar o esquerdista médio, o ex-deputado federal Xico Graziano, do PSDB, se deu o direito de “aconselhar” a esquerda.
Em artigo no Poder 360, se colocou como objetivo “compreender o fracasso eleitoral da esquerda” e responder à pergunta: “por que Lula, o PT e seu arco de alianças sofreram tamanha derrota nas disputas municipais?”. Naturalmente, não se pode esperar nada de positivo de um ex-deputado tucano tentando aconselhar a esquerda. Trata-se, finalmente, de um político do PSDB, partido que entregou o patrimônio nacional para o capital estrangeiro e jogou o povo na completa miséria.
Segundo ele, “nos derradeiros discursos de Guilherme Boulos está a resposta” do fracasso eleitoral da esquerda. Até aí, poderíamos nos enganar; achar que Graziano falaria alguma coisa interessante sobre a campanha desastrosa do candidato psolista. Na sua análise, ele diz: “seus estrategistas [de Boulos] perceberam que a fraqueza da candidatura dele advinha da distância entre suas pregações esquerdistas e a realidade nas massas paulistanas. Por essa razão, no 2º turno, Boulos abandonou sua cansada retórica socialista, substituindo-a pela valorização do enriquecimento pessoal. Esqueceu o discurso estatizante e adotou o lema do empreendedorismo”.
Graziano afirma, corretamente, que Boulos teve a postura de um candidato direitista, e é verdade. Mas vejam bem: segundo ele, a fraqueza da candidatura de Boulos seria “a distância entre suas pregações esquerdistas e a realidade nas massas paulistanas”.
Aqui, o ex-deputado tucano comete duas enganações. Primeiro, as “pregações esquerdistas” — se é que existiram — nunca foram sérias. O que nos leva ao segundo ponto: Boulos nunca foi um candidato esquerdista. Ao contrário, foi um candidato infiltrado na esquerda pelos grandes capitalistas com os quais têm relação — seus amigos banqueiros, que financiaram sua campanha etc.
O que Graziano quer dizer é que uma política radical de esquerda nunca ganharia apoio das massas paulistanas, o que é uma mentira. Boulos não obteve apoio das massas paulistanas justamente por não ter uma política radical, por ser um elemento do “sistema” infiltrado na esquerda, uma versão barata de qualquer político burguês direitista.
Essa afirmação é simples de ser constatada. Na capital paulista, o atual presidente Lula venceu o fascista Jair Bolsonaro, num momento em que sua campanha estava radicalizada e que ele era o candidato contra o regime político estabelecido pelo golpe de Estado de 2016. Quer dizer, justamente por ser um “esquerdista radical”, Lula foi eleito na capital paulista, onde Boulos disputou a prefeitura.
Aqui, chegamos à conclusão que o “erro” de Boulos (apesar que não podemos considerar, de fato, um erro, tendo em vista que o candidato do PSOL nunca foi um candidato contra o sistema) foi justamente sua semelhança com a direita tradicional.
Mas a que servem as afirmações de Graziano? A resposta está no parágrafo seguinte, quando afirma: “Boulos se transfigurar de Pablo Marçal escancara um fenômeno mundial: o envelhecimento da pauta da esquerda, elaborada a partir da secular formulação marxista da luta de classes, que opunha trabalhadores a empresários. Acontece que, no século 21, falar do operário contra o patrão soa como defender a carroça em lugar do trator”.
Graziano tenta passar a ideia de que a esquerda que fala em luta de classes, em luta contra a burguesia, estaria ultrapassada, “envelhecida”. Dessa forma, o ex-deputado tucano inverte totalmente a situação: o fracasso eleitoral da esquerda não estaria no abandono da sua política tradicional para se assemelhar à direita, mas na manutenção desse programa.
Qualquer pessoa séria, no entanto, sabe que a esquerda está, de fato, abandonando a sua política antiga. A conclusão óbvia a se tirar disso é que este abandono é o que faz a esquerda regredir. Afinal, por que o povo apoiaria a cópia da direita e não a versão original? O povo não votou na esquerda, porque a esquerda perdeu sua personalidade, se integrando à política direitista que prejudica o povo. Por isso, o bolsonarismo, com sua demagogia antissistema, foi quem mais cresceu.
Mas, em busca de consolação, Graziano tenta explicar o fracasso de seu próprio partido. “Ideias fora do tempo também fizeram soçobrar os partidos sociais-democratas da Europa, e mesmo o PSDB no Brasil. De certa forma, também por essa razão nos EUA se fragilizou o Partido Democrata. Todos se encarquilharam, não sabendo trabalhar com os novos, e complexos, dilemas políticos que preocupam a sociedade contemporânea”.
Quer dizer, o PSDB não teria desaparecido do mapa por seu apoio ao golpe de Estado e sua política de privatizações que jogaram milhões na fome e na miséria. O PSDB afundou por causa de “ideias fora do tempo”… Teríamos que explicar ao colunista que fazer o povo morrer de fome e perder seus direitos, além de entregar todo o País ao capital estrangeiro, não é exatamente uma “ideia”. O governo do PSDB foi tão desastroso que nunca mais o partido conseguiu eleger um presidente da República.
Sobre a social-democracia europeia e o Partido Democrata, também não se trata de “ideias fora do tempo”, mas da política profundamente neoliberal, pior ainda que a do PSDB, e das guerras intermináveis contra os povos do mundo inteiro.
Graziano continua sua alucinação:
“Não se trata de desmerecer, nem abandonar, a histórica luta pela justiça social. Nada disso. Trata-se de reconhecer que na economia pós-industrial, em plena era digital, outras aspirações populares surgem oportunizando, com variadas ferramentas, o progresso material e humano. Existe ainda, trazida pelo avanço tecnológico, a descrença: vou cuidar da minha vida, danem-se os políticos que me prometem sonhos.”
Quer dizer, o avanço tecnológico, analisado por todos os marxistas desde o século XIX, seria, agora, um motivo de transformação total do capitalismo. Não existiriam mais operários e burgueses, mas pessoas que buscam enriquecer por meio da tecnologia. Vejam vocês, brasileiros miseráveis, parem de ser pobres! Basta querer para enriquecer. Logo mais, todos serão iguais, não pela revolução e expropriação dos parasitas capitalistas, mas pelos aplicativos.
Esse raciocínio é, no mínimo, idiota. Graziano, entretanto, não fala isso por ingenuidade, mas sim, por canalhice. Ele diz:
“Eu acompanhava Fernando Henrique Cardoso em 1994, quando ele disse algo como ‘esqueçam o que escrevi’. Estávamos no restaurante Rubayat da alameda Santos, em São Paulo, reunidos com um grupo de empresários na fase de sua pré-campanha presidencial.”
“Depois da preleção dele, e antes do jantar ser servido, abriu-se um diálogo, ao que alguém, tendo lido algumas passagens de seus escritos sobre o desenvolvimento econômico-social, perguntou-lhe se ele ainda acreditava naquelas teses da esquerda.”
“FHC respondeu que nem tudo o que havia escrito no passado, durante a época que trabalhava na Cepal (Comissão Econômica da América Latina/ONU), em Santiago do Chile, ainda mostrava aderência com o presente, bastante modificado pelo surpreendente avanço do capitalismo latino-americano. Alguns desses trechos, disse, ficaram caducos, e não os repetiria hoje.”
“A imprensa caiu de pau, tornando o episódio famoso. Mas FHC estava certo. É absolutamente impossível a um intelectual que se preze, especialmente da área das ciências humanas, manter a eterna defesa de suas ideias em um mundo que evolui. Se muda a realidade, alteram-se as interpretações que dela se fazem. Errado é permanecer afincado nas mesmas bandeiras fincadas no passado, superadas pela história.”
Chega ser bizarro alguém, em 2024, falar “FHC estava certo”. O cidadão afundou o País e levou à maior crise de fome no Brasil desde, pelo menos, a década de 1930. Mas “estava certo”, segundo o analista. Na verdade, quando critica a esquerda por não ter visto “tal mudança”, por “permanecerem agarrados às suas crenças ideológicas, discursando para si próprios, desligados da tomada do desenvolvimento humano”; o que Graziano diz é: a esquerda deveria ser igual a FHC, ou continuará sendo “baluarte do passado”.
Sobre isso, já argumentamos que é exatamente o contrário. É justamente o fato da esquerda estar se assemelhando cada vez mais a FHC — vejam a política do ministro Haddad, na Fazenda — que faz a esquerda ficar cada vez mais impopular.