Mais uma vez o Brasil dá um exemplo para o mundo de como se destrói uma muda de democracia por meio das instituições democráticas, cuja função primordial seria garantir o seu florescimento, mas a verdade é que água demais mata a planta. Sob o manto do combate às fake news estaria o STF quase livre para tomar medidas que visassem preservar a soberania popular expressa no voto livre, ou seja, evitar que as mentiras influenciassem os votos dos eleitores. A frase soa até bonita e gramaticalmente correta, mas não faz sentido fora do idealismo que a burguesia tanto idolatra. Claro! É com uma nuvem de palavras bonitas, mas sem sentido algum, que a burguesia e as instituições do estado que é dominado por ela oprimem o eleitor. E para defender o povo, nada melhor que o autoritário Ministro Alexandre de Moraes, não é mesmo? Pelo menos é isso que afirma a tal esquerda liberal brasileira.
A porta escancarada
O art. 118 e seguintes da Constituição da República tratam da Justiça Eleitoral, mas ao contrário da Justiça do Trabalho, esta estrutura está atrelada à Justiça comum. Assim, os juízes que atuam nas varas cíveis e criminais dos Estados e da Justiça Federal encontram uma porta aberta para atuar na Justiça Eleitoral, o que é feito por nomeação. É uma lei complementar que regulamenta a composição e competência destes Tribunais e um outro conjunto de leis eleitorais que autoriza o TSE a exercer o poder regulamentar a cada eleição. Daí as famigeradas e degeneradas resoluções do TSE. Em tempos de constitucionalidade, já se questiona se essa autorização legal extrapola os limites de legalidade e independência dos Poderes, e se viola, em última análise, o princípio democrático, já que, na prática, o TSE atua como legislador ordinário sem ter sido eleito para isso. No entanto, está autorizado por este mesmo legislador. Isso cheira a um acordão bem ao estilo brasileiro: nossa elite jurídica é também política e se imiscui nas eleições sob aparente legitimidade, porque é a lei, feita pelo parlamento, lembre-se, que lhe concede esta competência.
Não, não são as pautas morais, nem as discussões sobre aborto ou porte de drogas que tornam o Judiciário um órgão político. O princípio contra majoritário explica e justifica a legitimidade do Poder Judiciário na defesa dos direitos e garantias fundamentais. Mas em matéria eleitoral, nada justifica a opção do legislador infra-constitucional em conceder poderes legiferantes ao TSE, exceto o nefasto interesse da burguesia em intervir no sistema eleitoral.
A fragilidade da barragem
Por esta apertadíssima síntese do arranjo normativo, já dá para perceber como nossas instituições negociam o poder entre si, sem qualquer diálogo com a sociedade. Como jurista, eu procuro analisar e destacar como se concede e sustenta tamanho poder por meio do arranjo normativo. O TSE funcionaria como um defensor do regime democrático e, por consequência, da soberania popular que se expressa no voto. Puro idealismo burguês! A propaganda eleitoral é feita com grana, muita grana, além de um aparato sofisticado de comunicação e uma dose alta de oportunismo. O cenário em ano eleitoral: a esquerda liberal tomando vinho/uísque, fazendo um “L” com uma das mãos, e propagando devaneios pseudo acadêmicos nas redes sociais confortavelmente em suas casas e apartamentos, a vanguarda da extrema direita na mesma toada, mas raivosa e pronta para levar milhares às ruas quando julga necessário, grande parte dos trabalhadores mais pobres completamente alijada dos jogos de poder e devidamente confundida pela mídia hegemônica, a direita limpinha procurando legitimar sua maldade em uma pseudointelectualidade, e para viabilizar tudo isso, as redes sociais como espaços controlados por uma meia dúzia de milionários e sua sanha imperialista.
Neste cenário, seria um Ministro de um Tribunal Constitucional que poderia evitar que o caldeirão fervesse? Apenas com sua caneta e sua ignorância jurídica? Esta barreira é fraca: as medidas tomadas pelo Ministro Alexandre de Moraes extrapolaram e muito a competência que a legislação infraconstitucional lhe concedeu, de modo a atingir em cheio o princípio democrático que a Constituição prevê.
Sob o argumento de que se trata de “terra sem lei”, o Ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE nas últimas eleições, usou e abusou de sua caneta intervindo, ao arrepio da legislação civil e das garantias constitucionais, nas liberdades de expressão e manifestação de pensamento. Já tratei nesta coluna, sinteticamente, da natureza destas liberdades e da eficácia negativa que a Constituição impõe aos Poderes. E para quem gosta de invocar o sistema alemão como exemplo de democracia constitucional, embora eu desconfie muito disso, cito a Gundgesetz para afirmar que também em terras tedescas as liberdades civis são irrestritas (schranklos).
A esquerda liberal brasileira, entretanto, apoiou as medidas do companheiro Xandão, como se nunca praticasse o tal mecanismo de destruir reputações com mentiras deslavadas propagadas nas redes sociais. Mas contra o Bolsonaro e o bolsonarismo, vale tudo.
Elon Musk, o herói
Violando o princípio da inércia da jurisdição, basilar do Estado de Direito, o Ministro Dias Toffoli, aquele que foi advogado do PT e depois foi nomeado AGU e de lá para o Supremo Tribunal Federal, abriu o inquérito das Fake News e nomeou o companheiro Xandão como relator. Isso foi em 2019. O inquérito visa apurar a propagação de fake news, os ataques à lisura das urnas eletrônicas e ao sistema democrático brasileiro em plataformas digitais. Foram indiciados políticos, empresários e blogueiros, os quais sofreram invasivas intervenções da Polícia Federal. Mesmo questionado sobre a legalidade da instauração, o STF decidiu em Plenário, por 10 votos a 1, que se trata de um procedimento coerente com os limites constitucionais. Neste procedimento teratológico, o Ministro Alexandre tomou medidas ainda mais teratológicas, ordenando a suspensão e bloqueio de perfis nas redes sociais, sobretudo, no X (Twitter). No início de abril deste ano, Elon Musk declarou que iria liberar o conteúdo que o Ministro Xandão mandou bloquear. E o confronto se seguiu por meio de declarações de tantos envolvidos e interessados no caso no próprio X.
Sob os elogios dos juristas progressistas de plantão, o companheiro Xandão seguiu passando vergonha em escala internacional, sem falar na promoção da degeneração do nosso Direito e, consequentemente, da nossa já fragilizada democracia constitucional. No último domingo, 21 de abril de 2024, Elon Musk foi mencionado como herói no discurso de Jair Bolsonaro num ato público que contou com mais de 30 mil pessoas. É que Elon Musk compartilhou em seu perfil no X, as publicações de um jornalista norte-americano, Michael Shellenberger, que denunciavam violações da liberdade de expressão no Brasil, e, relatou que o Ministro Alexandre Moraes “aplicou multas pesadas, ameaçou prender nossos funcionários e cortou o acesso do X no Brasil“. O Ministro, então, determinou a abertura de uma investigação contra o empresário e, ainda, determinou o pagamento de multa diária por cada perfil do X que fosse reativado. Além disso, a Polícia Federal anunciou a instauração de investigação sobre as declarações de Musk. Uma inacreditável baixaria que chegou ao Congresso norte-americano. A oitiva de Musk na Comissão de Relações Exteriores pode ocorrer até o dia 8 do mês de maio deste ano.
A pauta das liberdades públicas está com a extrema direita, enquanto a esquerda elogia e apoia os desmandos do companheiro Xandão. Estamos assistindo a uma discussão sobre quem controla a liberdade de expressão no Brasil, e por consequência, quem tem mais espaço de poder para implementar mecanismos de manipulação da opinião do eleitor. Não é um debate sobre quem defende ou não a liberdade de expressão, porque nem o Ministro Alexandre de Moraes, nem os demais Ministros do Supremo Tribunal Federal, nem o Congresso norte-americano e muito menos o Elon Musk está interessado em liberdade para ninguém, exceto para si mesmo. Ele se interessa somente em controlar, limitar, oprimir, enganar, ludibriar as pessoas para que sequer questionem a legitimidade de sua fortuna e o controle privado que exerce sobre a liberdade de expressão dos usuários em sua rede. Este é o herói da extrema direita que enfrenta o autoritário e débil defensor da degenerada democracia constitucional brasileira.