Via de regra, nossa coluna aborda temas de tecnologia, mas esta última semana deixou um gosto amargo na boca deste paulistano que busca entender a lógica da maior cidade do hemisfério Sul. Voltaremos semana que vem, mas por hora, permita-nos falar sobre o buraco para pizza das portarias dos grandes condomínios de São Paulo.
Para quem não sabe, quem tem algum dinheiro nesta cidade, da classe média aos multi-milionários, vive aprisionado. Este colunista escapou por pouco dessa tragédia, e ainda mora num prédio antigo, dos anos 1960, época em que a burguesia nacional ainda não havia optado pelo autoincarceramento, moda que logo contou com a adesão da pequena burguesia. Quem anda pelas estreitas calçadas da metrópole se vê apertado entre ruas esburacadas e grades ou muros altos, em sua maioria decorados com arame farpado ou cercas elétricas e muitas câmeras. Algumas dessas grades possuem um desenho curioso, um buraco retangular, no formato do prato preferido dos paulistanos, prato italiano aperfeiçoado em São Paulo, a pizza.
Sim, os moradores de condomínio não confiam sequer no entregador que lhes traz o jantar (ou almoço). Para não fazer um buraco muito grande na grade, que desse margem para a entrada de um perigoso bandido, temos o buraco da pizza. Uma solução racional, que atende o caso mais comum, para uma cidade completamente irracional. A cena da entrega, se não fosse pela máquina de cartão de crédito e pelo processo de pagamento, se assemelharia a um policial, que numa cela solitária, passa a refeição ao detento por uma portinhola. Aqui, porém, o preso encontra-se nessa situação voluntariamente. Ao contrário dos israelenses, que transformaram os territórios palestinos em prisões a céu aberto, cercadas por todos os lados, a burguesia brasileira resolveu se aprisionar e deixar o caos por eles criado do lado de fora. Sua interface com o mundo externo dá-se normalmente por um automóvel que se dirige a um estacionamento em outra fortaleza segura.
Com receio de cairmos em generalizações perigosas, São Paulo é única em sua desigualdade social. Tivemos a oportunidade de morar em outro país, a trabalho. No caso, em Helsinque, na Finlândia, onde vivemos por quatro anos. Passamos por algumas outras metrópoles, inclusive nossa vizinha Buenos Aires, onde aconteceu ontem a final da Copa Libertadores. A diferença é gritante, a começar pelas calçadas amplas; portas de edifícios que dão direto para a rua; cafés, padarias e pequenos negócios em abundância; acima de tudo, uma ausência de grades e muros. A sensação que se tem é de uma cidade ampla, ainda que sejam muito menores que São Paulo. Na capital paulista, estamos sempre exprimidos entre muros, torres de péssimo gosto.
Os bairros pobres de Paris, Helsinque e Buenos Aires há, pasmem, pobreza em diferentes graus. Ainda assim, há uma infraestrutura mínima, diferentemente de regiões de São Paulo como o Jardim Lucélia, na Zona Sul, onde há ruas ainda sem asfalto e saneamento básico não é garantia. Mas o centro dessas cidades encontra-se muito bem preservado, memória de um tempo anterior ao neoliberalismo, quando representavam um crescimento econômico acelerado. Em São Paulo, vemos uma ruína de prédios abandonados, milhares dormindo nas ruas e, mais recentemente, um efetivo policial que faz quem caminha pelos arredores da Praça da República imaginar que voltamos à época da ditadura militar.
Nos bairros ricos de São Paulo, no quilometro quadrado mais valorizado da cidade, ao redor do Parque Ibirapuera, não há boas ofertas de transporte público. Não fosse pela recém-criada linha Lilás do metrô, chegar ao parque, hoje em grande medida privatizado, seria muito complicado. Isso, porém, não surpreende. O que surpreende é o estado das ruas, totalmente esburacadas. As calçadas, graças à legislação da capital, são responsabilidade dos proprietários de cada lote e, portanto, são inconsistentes para o pedestre. Cadeirantes, carrinhos de bebê, idosos, todos têm dificuldade para andar. É uma corrida de obstáculos! Mas o rico paulistano, imagina-se, não anda, é dirigido por um motorista, de preferência num carro blindado.
Esta cidade é única no fato de que nem mesmo os multimilionários colocam seus funcionários na política para serví-los. O morador da Vila Nova Conceição fica sem luz. O de Moema, enfrenta enchentes. Ambos correm o risco de uma árvore cair sobre seus carros de luxo. Em que metrópole do mundo o morador de um prédio cujo apartamento está avaliado em dezenas de milhões de reais, sai de carro numa rua esburacada sob risco de enfrentar um algamento? Reclamam da insegurança, mas as ruas são escuras e perigosas desde o projeto. Muros e mais muros deixam as ruas vazias, sem vida. O pedestre normalmente caminha sozinho, longe dos olhares de pessoas sentadas em cafés, passeando em lojas ou coisa que o valha.
É comum o uso da palavra elite para descrever essa escória que controla a economia nacional. Somos forçados a recorrer às aspas. Criaram uma cidade em que simplesmente ninguém vive bem, uma cidade que, em determinados locais, parece que foi bombardeada, em outros, nem parece uma cidade, dado o grau de precariedade das condições.
Nem os aristocratas vivem bem, se é que vivem aqui de fato. Talvez seja essa a explicação. Essa “elite” medíocre sequer mora mais aqui. Dada a falta de apreço pela história da cidade, pela decadência até mesmo dos bairros de “alto padrão”, imaginamos que nem vivam numa cidade bonita e agradável para seus habitantes. Talvez morem no subúrbio de Orlando.