Ontem, 9 de março, publicamos a primeira parte de uma polêmica com a coluna “Alcançando a solução de dois Estados no rescaldo da guerra de Gaza”, assinada por Jeffrey Sachs, alto funcionário da ONU, escrita conjuntamente com Sybil Fares, publicado pelo sítio Brasil 247. Aqui continuamos com os demais argumentos apresentados pelos autores daquela peça.
Apesar da posição diplomática de ambos os autores, na primeira parte ficou clara a determinação de ambos em ignorar e ocultar a história da ocupação sionista, insistindo numa equanimidade na indisposição para negociações, uma farsa. Seguimos então com a farsa diplomática na defesa da “solução de dois Estados”:
“Como, então, proceder?
A recomendação usual é a seguinte sequência de eventos em seis etapas: (1) cessar-fogo; (2) libertação de reféns; (3) assistência humanitária; (4) reconstrução; (5) conferência de paz para negociações entre Israel e a Palestina; e finalmente (6) estabelecimento de dois Estados em fronteiras acordadas. Esse caminho é impossível. Há um impasse perpétuo nas etapas 5 e 6, e essa sequência fracassou durante 57 anos, desde a guerra de 1967.”
Em nenhum momento da história, omitem os autores, “Israel” deixou de aprisionar a população palestina — e torturá-la, vale mencionar. Os presídios israelenses são notoriamente centros de tortura, inclusive de crianças. Hoje se fala em reféns porque a operação Dilúvio de Al-Aqsa impôs uma derrota sem precedentes até o momento por parte dos palestinos da Faixa de Gaza contra “Israel”. Os recentes acordos são ainda outra prova da impossibilidade de negociação, e da desonestidade dos articulistas. Reféns palestinos, encarcerados por “Israel”, após a troca de prisioneiros, foram novamente aprisionados. E isto não é notado por estes que se propõem agentes neutros na situação.
A assistência humanitária e a reconstrução são outra farsa não mencionada pelos articulistas. A Faixa de Gaza sofre com um bloqueio total, que impede o desenvolvimento econômico da região, provocado por “Israel”. Mas o bloqueio não é mencionado. Uma reconstrução da Faixa de Gaza nunca foi permitida, especialmente após as eleições de 2006, em que o Hamas ganhou, apesar da fraude orquestrada pela Autoridade Palestina em aliança com “Israel” (e não denunciada pela ONU, também vale mencionar).
Segundo relatório disponível no sítio das Nações Unidas sobre a missão eleitoral da União Europeia na Palestina, naquele ano, o processo foi “aberto e bem conduzido”. A prisão ilegal de militantes do Hamas em campanha não é mencionada. O financiamento internacional ao Fatá pelo imperialismo também não. Apesar disso, o relatório menciona que a cobertura da televisão palestina foi desequilibrada em favor do Fatá, e alguns meios privados possuíam taxas diferentes para propaganda paga aos candidatos (a favor de quem isso seria, é óbvio). O relatório preliminar ainda afirma que dúvidas se colocaram a respeito da continuidade do processo eleitoral, quando membros de grupos armados tomaram vários escritórios da Comissão Central Eleitoral, “muitos deles ligados ao Fatá”, e muitos dos quais passaram sem punição. O relatório pode ser encontrado pelo nome “Open and well-run parliamentary elections strengthen Palestinian commitment to democratic institutions“(Eleições parlamentares abertas e bem conduzidas fortalecem compromisso palestino com instituições democráticas).
Uma série de outras irregularidades são citadas no mesmo relatório, o que é suspeito quanto à conclusão do mesmo, mas não é dele que falamos aqui. Os articulistas não mencionam as eleições de 2006, e nem a falta de eleições após aquela, para falar do problema das negociações. Se os palestinos sequer podem realizar eleições, impedidos pela Autoridade Palestina, serviçal a “Israel”, seria possível pensar em uma conferência de negociações? Adiante, frente a tal “impasse”, propõem os autores:
“A abordagem correta é, portanto, o oposto, começando com o estabelecimento de dois Estados em fronteiras globalmente acordadas, especialmente as fronteiras de 4 de junho de 1967 como consagradas nas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU. Os Estados membros da ONU terão que impor a solução de dois Estados, em vez de esperar por mais uma negociação fracassada entre palestinos e israelenses.”
Os democráticos e pacíficos diplomatas afirmam que a soberania palestina deve ser suplantada (novamente), por “fronteiras globalmente acordadas”. Ou seja, uma repetição do golpe da ONU de 1947, que deu base legal para o estabelecimento do Estado sionista. E que Estados são esses que “imporão”? Será que o desvio de recursos, como da água, é considerado pelos autores? Não, não é. O fato de o sionismo se apoderar da região mais rica da Palestina, das terras mais férteis, das cidades mais desenvolvidas, com os principais portos, já no início da ocupação e no golpe de 1947, é outro fator que não entra no cálculo pacífico da “solução de dois Estados”. Ensaiam, então, uma crítica aos EUA:
“É bastante possível, de fato provável, que os EUA inicialmente vetem o caminho proposto. Afinal, os EUA já usaram seu veto várias vezes para bloquear meramente um cessar-fogo. No entanto, o processo de provocar o veto dos EUA e depois garantir uma grande maioria na votação da Assembleia Geral da ONU será salutar por três motivos.
Primeiro, a política dos EUA está mudando rapidamente contra as políticas israelenses, dado o crescente entendimento do público estadunidense sobre os crimes de guerra de Israel e o extremismo político de Israel. Essa mudança na opinião pública torna muito mais provável que os líderes americanos aceitem mais cedo do que mais tarde a abordagem básica delineada aqui por causa das dinâmicas políticas internas dos EUA. Segundo, o crescente isolamento dos EUA no Conselho de Segurança da ONU e na Assembleia Geral da ONU também está pesando muito sobre os líderes estadunidenses, e forçando a liderança dos EUA a reconsiderar as suas posições políticas em vista de considerações geopolíticas. Terceiro, um forte voto no CSNU e na AGNU pela solução de dois estados nas fronteiras de 4 de junho de 1967 ajudará a fortalecer o direito internacional e os termos do acordo final, assim que o veto dos EUA for suspenso.”
Ou seja, caso os palestinos busquem a ONU e a “solução de dois Estados”, basta que aguardem a suspensão do veto dos EUA. E por quem ele seria suspenso? Pelos próprios EUA! Isso ao mesmo tempo em que a situação de crise geral que vem impondo impasses na política interna norte-americana é provocada pela luta armada do povo palestino, pela sua resistência que se mantém apesar da disparidade de condições nas frentes de batalha. Em outras palavras, para que vigore a “solução negociada”, a via é a luta armada. Triunfando política e militarmente tal via, no entanto, a “solução negociada” deixa de ser necessária. E tal qual a pressão para os EUA suspenderem seu veto aumenta, a pressão nos países árabes para a entrada na guerra, em defesa dos palestinos, também aumenta. Sintetizando, a solução dos dois Estados tem por única função desviar o foco da única política viável para se derrotar o sionismo, face às condições enfrentadas pelos palestinos: a luta às últimas consequências, a luta armada. A afirmação seguinte parece cínica:
“Por esses motivos, há uma perspectiva realista de que a ONU finalmente exerça sua autoridade legal e política internacional para criar as condições para a paz“, assim que os EUA permitam, é claro. E a conclusão do texto é tão absurda quanto todo seu conteúdo:
“A paz pode vir por meio da implementação imediata da solução de dois Estados, tornando a admissão da Palestina na ONU o ponto inicial e não o ponto final. Dois Estados soberanos, nas fronteiras de 4 de junho de 1967, protegidos inicialmente por forças de paz apoiadas pela ONU e outras garantias, serão o ponto de partida para uma paz abrangente e justa não apenas entre Israel e a Palestina, mas também uma paz regional que garantiria relações diplomáticas em todo o Oriente Médio e acabaria com esse conflito que tem sobrecarregado os habitantes, a região e o mundo por mais de um século.”
A proteção pelas “forças de paz da ONU” é um ponto central mencionado, mas não desenvolvido. Se frente a um genocídio e um bloqueio total não há forças de paz, a que papel elas se prestariam, e em que condições viriam? Uma outra força militar externa, ligada ao imperialismo, na região, seria em prol do povo palestino? E só presente a partir do momento em que as condições políticas sejam capazes de impor um recuo, ou seja, uma derrota ao imperialismo e ao Estado de “Israel”? Na prática se trata de uma medida para, caso a luta palestina avance além da capacidade política, diplomática, do imperialismo de massacrá-la, haver uma medida de contenção para manter o Estado nazista de “Israel” na região, ainda com a posição de base militar imperialista. Não há paz regional possível enquanto permanecer por lá a base militar de “Israel”. E quase 100 anos demonstram isso.