A esta altura, todos já vimos a notícia de que uma prova de concurso público em Macaé, no Rio de Janeiro, teve diversas questões anuladas – e o motivo não foi ambiguidade, duas respostas corretas ou nenhuma correta, como, às vezes, acontece em exames de múltipla escolha. A prova de português do exame, elaborado pela FGV, trazia em seus enunciados e alternativas uma série de frases ofensivas às mulheres, que, no entanto, deveriam ser analisadas apenas do ponto de vista gramatical.
Uma delas tinha como enunciado “Assinale a frase que não contém uma crítica ao fato de a mulher falar demais”. O pressuposto da questão é o velho clichê do Clube do Bolinha de que mulher fala demais. Entre as alternativas, coisas do tipo “A língua da mulher não cala nem depois de cortada” ou “Gosto de mulheres jovens: suas histórias são menores” e, talvez como resposta do teste, “Há mulheres que quando mentem, dizem a verdade”, assim mesmo, com erro de pontuação.
A coisa chamou a atenção de participantes do concurso e as questões foram anuladas. É claro que o episódio gerou uma grita, acusações de misoginia no exame e, como não poderia faltar, pedidos de investigação do caso. Em texto opinativo publicado no Brasil de Fato, articulistas indagam: “Qual a função de um concurso público? Quando um edital é preparado, ele está buscando que perfil de profissional? As questões de uma prova, conseguem desenhar o tipo de profissional que será contratado para aquele município, para aquele estado, para aquele órgão público?”.
Tudo certo, tudo certo como dois e dois são cinco. Pergunta-se no mesmo texto como uma instituição respeitada como a FGV elaboraria uma prova como essa. É estranho mesmo, pois a instituição, obviamente, adota o discurso antirracista, anti-homofóbico e antimachista, como hoje é, digamos, de bom-tom. Qualquer empresa hoje tem um manual de compliance ou coisa do gênero que, de saída, coibiria a publicação desse tipo de texto até para manter a imagem institucional.
Aguardemos as tais investigações, se é que existirão. O leitor nos permita, no entanto, uma breve especulação. As frases da prova são desagradáveis, mas, sobretudo, evocam um humor de fundo machista muito antiquado, o que sugere que o autor das questões já seja bem entrado em anos, como se dizia em priscas eras. Por outro lado, era possível responder ao teste, por menos que se concordasse com os seus termos. Em outras palavras, não era preciso concordar que a mulher fala demais para acertar a questão. Bastaria fazer uma operação lógica.
Se nos remetermos às últimas provas de linguagens do Enem, vamos encontrar o mesmo tipo de problema, porém com sinal invertido. No Enem, o procedimento foi um pouco mais sutil, porque a banca que elaborou as questões tomou o cuidado de selecionar textos de viés identitário e pedir aos participantes a interpretação desses textos. Novamente, bastaria fazer a operação lógica.
De acordo com um desses textos (do último Enem), que tratava da participação de uma “mulher trans” em competição esportiva feminina, “os limites do potencial inclusivo no esporte são dados pela”… (b) “dependência de características biológicas padronizadas” (resposta correta à luz do texto). As características padronizadas consistem em determinada contagem hormonal para que a pessoa possa ser considerada mulher, o que deveria ser considerado “um limite à inclusão”. Embora os identitários se esforcem por relegar a segundo plano ou mesmo negar as características biológicas dos seres humanos, pelo menos no âmbito do esporte, a polêmica é certa.
No caso do Enem, a prova de linguagens foi inteiramente baseada nas posições identitárias, com direito a ambientalismo e “decolonialismo”. Talvez fosse o caso de perguntar se o perfil esperado nas universidades tem de ser necessária e unicamente identitário. Cabe na universidade a crítica a essas “teorias”? Ou a universidade cultiva o pensamento único?
É claro que o “tiozão do zap” que fez a prova do concurso de Macaé não é um exemplo de posicionamento crítico, e as frases que ele usou na prova beiram o ridículo. Nem é preciso ser feminista para chegar a essa conclusão. Pode dar-se o caso, por outro lado, de o sujeito ter pretendido dar uma espécie de “resposta” ao Enem e aos vestibulares de universidades públicas, hoje claramente pautados pelo identitarismo, que, se, na prova de português, aparece disfarçado pelas questões de “interpretação de texto”, nas provas de história, pode provocar distorções.
O caso poderia motivar uma discussão para além de esquerda identitária vs. direita bolsonarista. Fora desses grupos, que se digladiam no circo distracionista da imprensa burguesa, certamente existe vida inteligente. Caberia, aliás, perguntar se “esquerda identitária” é ou não um paradoxo. Fica a sugestão de questão para o próximo concurso.