Em coluna intitulada “Lula sempre do lado errado” e publicada no órgão bolsonarista Gazeta do Povo no último dia 20, o articulista do sítio, Rodrigo Constantino, questiona: “desejar a morte de alguém – de qualquer pessoa – seria uma postura inadequada para um cristão?” A pergunta é meramente retórica e, na sequência, Constantino responde dizendo que “há controvérsias.” O recurso retórico é usado para justificar algo frontalmente contrário aos princípios do cristianismo, que é a celebração da morte de alguém, nesse caso, do presidente iraniano Ebrahim Raisi, morto em um acidente de helicóptero no último dia (19).
“Creio que talvez nem o mais fiel dos crentes veria muito problema em alguém desejar a morte de Hitler no meio do Holocausto”, escreve o bolsonarista, acrescentando que “o fato é que monstros existem, e é natural querer vê-los longe do poder que usam para praticar suas monstruosidades. Era o caso de Ebrahim Raisi, presidente do Irã apelidado de ‘carniceiro do Teerã’ pela carnificina que promovia contra inocentes.”
Finalmente, o objetivo de atacar a nota de pesar publicada pelo presidente brasileiro na rede social X (tal como indica o título) é expresso ao comentar “e Lula, o que fez? Ora, claro que se juntou ao time dos nefastos, uma vez mais. O presidente lamentou a morte do carniceiro”, diz o autoproclamado cristão, acrescentando outro parágrafo em que demonstra o cinismo simplório típico da extrema-direita ao acusar Lula e o Partido da Causa Operária (PCO) de “flerte com o nazismo”:
“O fato é que o regime nazista iraniano tem a simpatia dos comunistas, tanto que, além de Lula, o PCO postou nota de pesar e disse: “Descanse em paz, companheiro”. O comunismo está ligado ao islamofascismo pelo ódio comum ao Ocidente. Os conservadores ocidentais estão todos indiferentes ou comemorando a morte do carniceiro, como o povo iraniano vítima do regime. Enquanto isso, os “progressistas” estão tristes com a perda do ‘companheiro’. Isso diz tudo sobre quem realmente flerta com o nazismo atualmente”, diz.
A primeira coisa a ser dita sobre esta pérola de Constantino é que a pergunta inicial – se comemorar a morte de alguém seria uma postura inadequada a um cristão – já revela o total desencontro entre o que a cúpula bolsonarista defende e o cristianismo. Fosse um cristão honesto, Constantino faria o que um comunista sério faz ao indagar-se sobre a posição marxista sob determinada questão: consultar o formulador original da doutrina.
No caso dos comunistas, isto significa ler Karl Marx, ao passo que para um cristão, a resposta estaria em Jesus Cristo. E qual era a política daquele que “cristãos” como Constantino dizem seguir?
No evangelho de Mateus, 5:9, uma indicação que já indica a oposição entre a política de Jesus e a dos bolsonaristas: “Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.” Também no livro de Mateus, 6:14-15, é atribuído à figura mais importante do cristianismo a frase: “porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial vos perdoará a vós; se, porém, não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos não perdoará as vossas ofensas.”
Muitas outras posições similares sobre a questão da violência e a defesa intransigente da paz por Jesus aparecem nos Evangelhos. Alguém poderia contra-argumentar dizendo que tais posições foram defendidas em pregações relativamente tranquilas, livre da opressão das autoridades judaicas de então. Vejamos então o que a Bíblia diz sobre os dramáticos momentos finais do líder dos seguidores do cristianismo:
“Então Jesus disse-lhe: Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada, à espada morrerão.” (Mateus 26:52). Segundo o livro sagrado dos cristãos, a fala acima fora uma repreensão do líder a um de seus partidários que tentava impedir sua prisão. Finalmente, após ser barbaramente torturado, crucificado e encontrando-se a beira da morte, reforçou: “E dizia Jesus: Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lucas 23:34).
Só uma pessoa totalmente desconectada do cristianismo teria dúvidas de que diante do falecimento do líder iraniano, a posição cristã seria oposta ao que defende Constantino. Em outra passagem bíblica, no livro de Mateus (19:16-22), um jovem rico diz seguir todos os mandamentos e “amar ao próximo como a si mesmo” (19:19), porém quando cobrado a demonstrar na prática que segue os preceitos defendidos, a doar sua fortuna aos pobres e mostrar que realmente “ama o próximo com a si mesmo”, o jovem deixa claro que ama mais a si mesmo do que ao próximo e abandona o grupo de Jesus. Posição similar é adotada por Constantino e pelos dirigentes bolsonaristas, cuja política o colunista de Gazeta do Povo expressa.
Fosse Constantino um marxista, faria todo sentido do mundo aplaudir a morte de inimigos célebres, como fizeram os comunistas italianos ao exibirem o cadáver de Mussolini aos que sofreram o horror da ditadura fascista. Diferente de Jesus, que defendeu a política pacifista até o fim, Lênin e Trótski, os dois maiores marxistas que existiram após os pais do socialismo científico (Karl Marx e Frederich Engels) tinham como política enfrentar os contrarrevolucionários que apoiados pelo imperialismo, se insurgiram de armas nas mãos contra a República dos Sovietes, com “o terror vermelho”.
Não quer dizer que os comunistas irão celebrar a morte de opositores, apenas que não tem na questão uma oposição de princípios, ao contrário de Jesus e daqueles que verdadeiramente seguem sua doutrina, o que é claramente não é o caso de Constantino. Para ele e o setor social por ele representado, o cristianismo é tão somente uma ferramenta para se imiscuir no meio das massas, sem outro objetivo além de confundi-las. Tal qual o jovem rico, a extrema-direita mostra, na prática, não apenas uma contradição frontal com o cristianismo, mas uma oposição, evidenciando serem inimigos do que o fundador da religião apregoou.