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Fábio Picchi

Militante do Partido da Causa Operária (PCO). Membro do Blog Internacionalismo e do Coletivo de Tecnologia do Partido da Causa Operária. Programador.

Coluna

Criatividade revolucionária

Com muito menos tecnologia que seu adversário, as brigadas Al Qassam do Hamas foram capazes de infiltrar Israel no maior sucesso militar desde a fundação do enclave imperialista

O serviço secreto israelense, o Mossad, tem a fama de ser um dos melhores e mais bem-informados do mundo. Há quem diga que seriam mais preparadores que a Agência Central de Inteligência norte-americana (CIA). A ofensiva liderada pelo Hamas no último dia 7, a operação Dilúvio de Al Aqsa, desferiu um belo golpe nesse mito, construído em parte com mérito por operações bem-sucedidas do Mossad, mas em grande medida sustentado por seriados e filmes hollywoodianos.

A ofensiva ainda derrubou outro mito: o das poderosas e obscuras ferramentas de espionagem digital como o Pegasus, spyware desenvolvido em Israel ainda em 2011, utilizado por inúmeros “clientes” da NSO Group, como o governo da Arábia Saudita, o próprio governo de Israel, entre tantos outros. O Pegasus seria capaz de se instalar e monitorar um dispositivo de um usuário desavisado caso ele simplesmente clicasse em um link, recebido via mensagem. Para fazer isso, explorava vulnerabilidades tanto no sistema operacional dos iPhones, o iOS, como no Android.

Sua existência foi descoberta em 2016 pelo grupo de pesquisa Citizen Lab, quando o ativista emirati Ahmed Mansoor recebeu uma mensagem que julgou estranha em seu celular, e a enviou a seus colegas canadenses para que avaliassem o link suspeito que a mensagem pedia que clicasse. Em suas diversas iterações, o Pegasus, a depender da versão do sistema operacional da vítima, poderia ser instalado até mesmo sem intervenção da mesma no que é conhecido como uma “vulnerabilidade de zero cliques”.

A NSO Group, que desenvolve esse “kit” de espionagem digital, tem entre seus funcionários pessoas com experiência nos serviços de inteligência israelenses. O spyware é considerado por Israel como uma arma secreta, e a exportação dessa tecnologia é regulada pelo governo. Mas como pudemos perceber pelas denúncias de inúmeros jornalistas e ativistas que tiveram seus celulares infectados, alguns dos quais acabaram mortos provavelmente pelas informações capturadas pelo atacante por meio do vírus israelense, os critérios para exportação não são muito rigorosos. O Pegasus é usado desde pela polícia israelense até o governo da Arábia Saudita, que supostamente usou-o para rastrear o jornalista Jamal Khashoggi e matá-lo no consulado saudita em Istambul.

Mesmo com todos esses recursos tecnológicos, que atuam preventivamente e estão cobertos pelos infindáveis mísseis que Israel possui, o Hamas conseguiu realizar sua ofensiva. E de forma inédita para a luta palestina. Estariam os sionistas relaxados, confiantes de que sua limpeza étnica não pode mais ser combatida por suas vítimas? Teriam eles próprios organizado a ofensiva para justificar os bombardeios criminosos que ao longo da semana perpetraram contra Gaza?

Acredito que não. O primeiro caso é mais plausível, mas Israel é de fato uma sociedade militarizada. Todos estão prontos para o combate; seu orçamento militar é gigantesco (graças aos Estados Unidos); e seus aparatos de inteligência são realmente muito eficazes. Já a segunda hipótese carece de qualquer lógica. Teriam que ser muito burros para abalar a confiança de sua própria população em sua invencível fortaleza, principalmente num momento político de fragilidade para o governo. De certa forma, a resposta é decisiva, como é para demonstrar à população sionista que podem confiar em seu governo genocida.

O que aconteceu foi muito simples. O Hamas, ou melhor, as direções palestinas, aprenderam a enfrentar seus adversários. Basta ver como invadiram o país, com paraquedas e propulsores, para não serem pegos pelos radares de Israel e seu poderoso Iron Dome.

Houve quem dissesse que o Hamas estaria se valendo de celulares chineses sem backdoors, métodos de infiltração deixados para trás pelas fabricantes dos dispositivos para que serviços de inteligência possam espionar sua população. Creio que isso seja ingenuidade dos “multipolaristas”.

O Hamas muito provavelmente valeu-se de métodos tradicionais, criativos hoje em dia, assim como o Talibã. Encontros presenciais, estabelecimento de uma rede de confiança entre as pessoas, treinamento e uso de equipamentos efetivos, mas menos sofisticados. A vigilância moderna tem um viés para métodos sofisticados de ataques, mas há formas muito simples de se causar muito dano, como vimos essa semana.

Não ouso aqui dizer que seja simples driblar os confortos dessas tecnologias modernas que, ao mesmo tempo, nos auxiliam e nos oprimem. Ainda assim, o Hamas mostra que é possível e qualquer organização revolucionária que busque realizar feito equivalente deve compreender esses métodos.

Essa criatividade revolucionária palestina, do povo mais martirizado do mundo, traz um conforto. Como já discutimos por aqui, há um medo de que inteligência artificial, redes sociais e outras tecnologias modernas configurem-se numa distopia capitalista eterna. Mas como bem sabemos, as rodas da História podem até desacelerar, mas nunca param ou giram no sentido oposto. A História segue adiante e a criatividade e engenhosidade humanas superam os desafios que nós mesmos nos impomos, próprios dessa sociedade de classes, dividida entre oprimidos e opressores. A criatividade revolucionária do Hamas mostra que por maior e mais sofisticada que seja a ameaça, nada pode parar a luta histórica pelo fim da opressão do homem pelo homem.

É como na história bíblica de Davi e Golias, que os judeus devem bem conhecer, mas mais bonita, pois não há nenhuma divindade envolvida.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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