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Coluna

Consciência negra e consciência de classe

Acusados de "aporofobia", estudantes da PUC são cancelados

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, uma querela entre estudantes de Direito da PUC e da USP em uma competição de handebol na cidade de Americana pode levar alguns deles ao banco dos réus por crime de injúria racial. Na verdade, uma parte da punição já foi aplicada graças à política de cancelamento, que dispensa o chamado “devido processo legal”.

Vídeos divulgados na internet, em que alunos da PUC chamam os da USP de “cotistas” e “pobres”, provocaram indignação e muitas reações de repúdio às atitudes “racistas e aporofóbicas”. O termo “aporofobia” designa o que seria uma espécie de aversão a pobres, mais ou menos como se usa “homofobia” para nomear aversão a homossexuais. Assim, “pobre” passa a ser uma “identidade”. “Homofobia”, segundo entendimento do STF, é equivalente ao crime de racismo; “aporofobia”, até onde se sabe, (ainda) não passou pelo crivo da corte.

Independentemente de virem a responder a processo na Justiça, os estudantes já perderam suas vagas de estágio em importantes escritórios de advocacia da capital e podem ser expulsos da PUC. A reitora da Universidade Católica declarou no Jornal Nacional, da Rede Globo, que repudia “com veemência toda e qualquer forma de violência, racismo e aporofobia”.

Como o trecho filmado só mostra o pessoal da PUC “xingando” os outros de “cotistas” e “pobres”, temos a impressão de que se trata de manifestação gratuita, motivada por mera intolerância ao outro etc. Uma das estudantes da PUC, no entanto, teria relatado à Folha de S. Paulo os antecedentes do trecho distribuído na internet.

Pedindo que seu nome não fosse divulgado na reportagem, ela disse que a confusão teria começado quando a torcida da Faculdade de Direito da USP explodiu fogos de artifício dentro do ginásio e a turma da PUC teria reclamado. Os da USP teriam chamado as meninas da PUC de “putinhas” e “vadias” e feito “menções de cunho sexual aos seios delas” e, em seguida, chamado os alunos da PUC de “burros”, uma vez que não conseguiram ser aprovados no vestibular da USP, tido como o mais difícil. Esse seria o contexto em que os da PUC revidaram chamando os futuros colegas de profissão de “cotistas” e “pobres”.

Segundo o “Direito Identitário”, que ainda carece de sistematização, aparentemente não se julgam fatos, mas identidades. Tomemos o caso Sílvio Almeida vs. Anielle Franco, um homem negro contra uma mulher negra. Ele é sumariamente julgado no tribunal do cancelamento, sob alegação de que a mulher não teria motivos para inventar as acusações de importunação sexual e/ou assédio sexual. Se se tratasse de homem negro vs. mulher branca, talvez o resultado fosse diferente. As ofensas de cunho sexual dirigidas às alunas brancas e ricas da PUC valem menos que chamar alguém de cotista e pobre, o que seria um insulto racial, passível de processo.

O problema dessa diretriz de julgamento é que as regras não são claras nem mesmo pautadas pela racionalidade. Joga-se na internet um vídeo, que contém um recorte da situação, e se produz uma reação pública emocional, a qual definirá o destino dos acusados. Vale notar que, na USP, nem todo cotista é PPI (preto, pardo ou indígena). A universidade também destina cotas a estudantes de escola pública, independentemente do atributo étnico. Logo, “cotista”, ao pé da letra, não é necessariamente um insulto racial.

O episódio revela, no entanto, que existe uma tensão social no marco da política de cotas – e isso, de certo modo, é bom, pois indica que, de fato, há um deslocamento de pessoas de origem pobre para a universidade pública, que antes era majoritariamente frequentada pelos filhos da burguesia. É fato, porém, que, mesmo com as cotas, há cursos que continuam com baixíssimo contingente de negros, caso do de medicina da USP. Nessa tensão, que é uma expressão da luta de classes, a burguesia tem mais armas para lutar, sobretudo porque, por melhor que seja o currículo da pessoa, o ingresso no mercado de trabalho depende do que as empresas definem como critério para fazer jus às melhores vagas.

Dito de outra forma, se a USP se tornar uma universidade majoritariamente frequentada por pessoas de origem pobre, a burguesia vai valorizar os diplomas estrangeiros e/ou de instituições frequentadas pelos filhos de ricos, como já vem ocorrendo. Nesse sentido é que a política de cotas não resolve o problema maior, que é a tensão permanente entre as classes. Ela faz um movimento, mas, por si só, é insuficiente.

Por outro lado, transformar “pobre” em identidade, cunhando o termo “aporofobia”, é uma forma indireta de dizer que a pobreza é uma condição imutável. O sistema precisa dos pobres para produzir os ricos, portanto não vamos “xingar” o pobre de pobre! Vamos “respeitar” todo o mundo – e “respeitar” aqui significa, mais ou menos, moderar o vocabulário para parecer que todos somos iguais nesse imenso mar de “diversidade”.

A política identitária faz relativo sucesso porque é ancorada em uma persistente propaganda que faz parecer que a sociedade pode avançar num clima de congraçamento universal, sem perturbar os interesses da burguesia, bastando o despertar de uma “consciência humanitária”. A responsabilidade pela opressão deixa de ser atribuída à burguesia, que é a classe dominante, e passa a ser diluída “estruturalmente” em toda a sociedade. Assim, a título de defender uma “consciência negra”, por exemplo, apontam-se as armas para alvos da mesma classe, muitas vezes sob o patrocínio cínico de algum banco ou outra instituição da burguesia, que, não por acaso, é a grande defensora dessa política.

O curioso é que, mesmo com todo o esforço para substituir a consciência de classe por outras consciências, fica cada vez mais difícil dizer que a luta de classes não existe. Uma briga de estudantes de Direito, em competição esportiva, quando os ânimos se acirram, pode pôr às claras aquilo que o identitarismo tanto se esforça para esconder. De todo modo, a turma da PUC está sendo punida não por ser racista, mas por não ter aprendido como as coisas funcionam.

P.S. Folha informa que, quatro anos após a morte de João Alberto Silveira Freitas, o homem negro assassinado por seguranças em uma unidade do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, nenhum dos seis indiciados pelo crime foi condenado. A Justiça gaúcha também negou, neste ano, a hipótese de motivação racial. Na ocasião, o Carrefour pagou R$ 115 milhões a título de Termo de Ajustamento de Conduta, evitando condenação por racismo, e contratou um Comitê Antirracismo, do qual participava Silvio Almeida.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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