Em meio ao grande genocídio que se intensifica na Palestina todos os dias desde a ação heroica do Hamas no 7 de outubro do ano passado, o debate a respeito do tema toma todos os principais círculos políticos do planeta. Nos Estados Unidos, os estudantes ocuparam suas universidades com palavras de ordem defendendo o Hamas e a resistência armada palestina. No Brasil, no entanto, o que se vê é uma esquerda vacilante, que capitula diante do sionismo e simplesmente não consegue defender de forma consequente a resistência armada.
Uma manifestação disso é um texto publicado no blogue Esquerda Online, com o título “A única alternativa”. O artigo é de cerca de vinte anos atrás e foi escrito originalmente por Edward Said, a versão que está no sítio brasileiro é uma tradução de Waldo Mermelstein para o português. O texto procura analisar por que os sul-africanos foram capazes de ganhar o apoio e admiração do mundo inteiro em sua luta contra o apartheid, mas os palestinos, segundo o autor oportunista, não teriam tido o mesmo resultado.
Said afirma que foram duas frases ditas por Nelson Mandela num evento do qual participou quando estava no país que o “impressionaram”. A primeira delas seria que “a campanha contra o apartheid foi uma das grandes lutas morais que capturou a imaginação do mundo”. O que é uma colocação bastante confusa, típica de um conciliador como Nelson Mandela. A luta contra o apartheid não era “moral”. Era, sim, uma luta política muito material dada a brutalidade da repressão dos africâners, combatida de armas na mão pela resistência negra sul-africana. Essa luta poderia ter tido um desenvolvimento muito mais radical não fosse pela conciliação promovida por Mandela em seu período final, muito respeitado pelos longos anos que amargou nos porões da ditadura racista justamente por ter participado da luta armada que Said condena.
A segunda frase de Mandela que impressionou Said foi que ele teria dito que a luta antiapartheid não era para acabar com a discriminação racial, mas “para todos nós afirmarmos nossa humanidade comum”. E o próprio Said conclui que “implícito nas palavras ‘todos nós’ está que todas as raças da África do Sul, incluindo os brancos pró-apartheid, eram vistas como participantes de uma luta cujo objetivo finalmente era a coexistência, a tolerância e ‘a realização de valores humanos’”.
Ambas as frases deixam transparecer uma posição de submissão e de tentativa de entrar num acordo, muitas vezes impossível, com os seus opressores. A ideia de uma luta para a tolerância e ‘realização de valores humanos’, incluindo um setor político que colonizou seu país, escravizou, torturou, prendeu e perseguiu o seu povo durante anos sem perdão. Propagar esse tipo de política é um verdadeiro desserviço para a população que sente ódio por seus algozes.
Said acredita que a dificuldade encontrada pelos palestinos para que sua luta seja “aceita” pelo mundo todo é que não há essa política de submissão absurda e criminosa propagada pelas lideranças. Ele se pergunta “por que a luta palestina (ainda) não capturou a imaginação do mundo e por que, mais ainda, não aparece como uma grande luta em termos morais que, como disse Mandela sobre a experiência sul-africana, recebeu ‘apoio quase universal… de praticamente todas as convicções e partidos políticos?’”. No entanto, é preciso ter claro que a luta contra o apartheid só se tornou algo com apoio quase universal quando ela chegou ao fim e os negros conseguiram acabar com esse regime na África do Sul. Durante todo o período em que uma luta era realmente travada, todo o imperialismo e os governos em geral não ousavam se posicionar concretamente contra os brancos da África do Sul. Aqui somos obrigados a lembrar que um dos principais apoiadores da África do Sul e seu regime de apartheid foi o estado de “Israel”, que opera segundo a mesma lógica supremacista racial.
Said, com essa incompreensão do problema do apartheid, procura trazer a mesma incompreensão para o plano da luta palestina, onde ele comete uma série de erros de apreciação. Primeiramente, afirma que, no que diz respeito ao apoio internacional, “o equilíbrio estratégico foi amplamente a favor de Israel; foi apoiado incondicionalmente pelos EUA (US$ 5 bilhões em ajuda anual), e no Ocidente, a mídia, a intelligentsia liberal e a maioria dos governos estiveram do lado de Israel”. Trata-se de uma forma confusa de ver o problema. É evidente que a maior parte da população mundial está ao lado dos palestinos, um povo oprimido e martirizado pelos criminosos sionistas, no entanto a região é de uma importância estratégica gigantesca para o imperialismo, que exerce pressão e influência através da corrupção e da ameaça militar para impedir que governos deem apoio oficial aos palestinos.
Said comete um erro grave, ao pensar que os atos ‘terroristas’ que a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) levava adiante em seu período mais combativo seriam o motivo pelo qual o mundo apoiava os palestinos: “Porque, no entanto, os objetivos estratégicos cambiantes da OLP sempre foram obscurecidos por ações terroristas inúteis, nunca foram abordados ou articulados de forma eloquente e porque a preponderância do discurso cultural no Ocidente era desconhecida ou incompreendida pelos formuladores de políticas e intelectuais palestinos, nunca fomos capazes de reivindicar o nosso alto nível moral efetivamente”. Essa política é totalmente falsa, e isso está evidente pelos acontecimentos do 7 de outubro, quando o Hamas e outros grupos da resistência palestina atingiram ‘Israel’, demonstrando que suas defesas não eram intransponíveis. Foi graças a esse ataque muito bem sucedido que o mundo agora está cada vez mais à vontade para demonstrar seu apoio aos palestinos. É a demonstração de fraqueza do opressor que faz com que os oprimidos queiram se levantar, e não o oposto.
É muito curioso que o Esquerda Online tenha trazido à baila um texto antigo como esse, sem comentar nada, indicando que provavelmente têm uma inclinação política semelhante à do autor, que condena a reação dos palestinos contra os criminosos sionistas, demonstrando que muito provavelmente defendem essa posição falida.
Já ficou demonstrado, no entanto, que o segredo para a vitória contra “Israel” é o apoio incondicional à resistência armada na Palestina. Foi graças à sua ação que o imperialismo foi colocado contra a parede e agora está em uma crise gigantesca, correndo o risco de perder um de seus principais enclaves no Oriente Médio.