Estados Unidos

Como se mede valor político?

Se resultados eleitorais são uma forma de se medir sucesso político, a métrica, ainda que objetiva, oculta a qualidade política dos eleitos e abre as portas para o carreirismo

As eleições norte-americanas deste ano parecem conter um número sem precedentes de reviravoltas. Da tentativa de assassinato contra Donald Trump à renúncia da candidatura à presidência de Joe Biden, tudo parece ser possível. A crise pela direita fez com que uma ala conservadora do Partido Republicano, encarnada pela família Bush e pelo ex-vice-presidente Dick Cheney, apoiasse a candidata democrata Kamala Harris contra Trump, considerado um risco pela ala dominante da burguesia imperialista.

A crise também desenvolve-se pela esquerda, ainda que em menor intensidade. O último episódio dessa crise transpareceu num embate virtual entre Alexandria Ocasio-Cortez, congressista eleita pelo Partido Democrata, e a atual candidata à presidência pelo Partido Verde, Jill Stein. Em resposta a um segmento de entrevista em que Stein alegava que Cortez estivesse recebendo ordens do Comitê Nacional Democrata (DNC, na sigla em inglês), a congressista declarou:

“Ninguém precisa de argumentos prontos [vindos do DNC, segundo Stein] para saber que Jill Stein não ganhou nem um jogo de bingo na última década e que, se você realmente se importa com as pessoas, você se organiza, constrói força e infraestrutura e vence.”

A declaração de Cortez reforçava a posição da entrevistadora de Stein – se é que podemos considerá-la uma entrevistadora – que disse à candidata verde que estava surpresa em vê-la “falando de mulheres de cor atuando como papagaios” no lugar de olhar para a “matemática simples”. Segundo a âncora do podcast The Breakfast Club, a principal coisa que Cortez fez que Stein não teria feito fora “ganhar eleições”.

A pressão contra Stein, que deve provocar empatia em todos os que nadam contra a maré política reacionária da burguesia, esconde uma questão interessante. Pela publicação, Cortez claramente se orgulha de suas vitórias eleitorais (três, em 2018, 2020 e 2022), mas esse não é só o principal “sucesso” que a separa de Stein, é o único, do ponto de vista político. Finalmente, desde que chegou ao Congresso dos Estados Unidos, quais são as realizações políticas de Cortez?

Não sabemos o que Stein faria se fosse eleita presidente dos Estados Unidos, ou se os candidatos do Partido Verde fossem eleitos para o Congresso ou Senado norte-americanos, mas a candidata verde apareceu com firmeza em todas as questões políticas fundamentais do momento: contra a guerra da OTAN contra a Rússia e contra o genocídio na Palestina. Foi inclusive presa no final de abril deste ano ao participar de manifestação em defesa da Palestina ao lado dos estudantes da Universidade de Washington.

Cortez, por outro lado, em seu discurso na última convenção do Partido Democrata, que consagrou Kamala Harris como candidata à presidência, agradeceu a Harris e seu colega de chapa, Tim Waltz, por “sua visão”. E foi além, agradeceu Joe “genocida” Biden por sua “liderança”, saudação que o próprio presidente norte-americano pode não estar em condições de receber. Não satisfeita, teceu mais elogios a Harris, talvez de forma mais eloquente que a própria candidata à presidência, falando que ela estaria “trabalhando incansavelmente por um cessar-fogo [na Palestina] e por trazer os reféns de volta às suas casas”. A centena de reféns israelenses, naturalmente, não os quase 10 mil reféns palestinos que “Israel” mantém presos em suas masmorras.

Mas não são apenas os discursos políticos de Cortez que pesam contra seu “sucesso” eleitoral. A candidata pode ter ganho sucessivas eleições, mas o que fez com seu cargo? Listemos aqui algumas posições.

Ao final de 2022, Cortez votou pelo bloqueio da greve dos trabalhadores ferroviários porque isso prejudicaria politicamente o governo democrata de Joe Biden, um voto direto contra o direito dos trabalhadores. Em março de 2021, após meses de campanha pelo corte de verbas da polícia (em razão do assassinato de George Floyd por um policial em 2020), Cortez se absteve de votar no pacote que aumentava em US$1,9 bilhões o orçamento da polícia do Capitólio, que foi aprovado por um voto. Seria ela a favor apenas da polícia que a protege, no prédio do Congresso norte-americano?

Essa votação reflete a polarização dentro do Congresso e o poder que Cortez, e seus cinco colegas “progressistas” teriam de pressionar a bancada democrata, exigindo concessões da ala conservadora do partido. Como fez o Bloco pela Liberdade, ala mais radical do Partido Republicano que frequentemente atrapalha o funcionamento normal da câmara para extrair concessões dos demais políticos de seu partido.

O posicionamento mais vergonhoso de Cortez talvez tenha sido sua abstenção na votação que aprovava o envio de financiamento militar para “Israel” em 2021. O aparato repressivo israelense não bombardeava Gaza como faz hoje, mas à época, a polícia fascista de “Israel” havia atacado palestinos que foram realizar suas preces na mesquita de Al Aqsa, muitas vezes em apoio a manifestações da extrema-direita sionista que defende a destruição do local sagrado. Ao contrário da votação anterior, em que Cortez poderia ter decidido o resultado, neste caso, o pacote de apoio a “Israel” foi sustentado por ambos os partidos, demonstrando certo caráter ideológico – ou oportunista – de sua posição. Essa foi a declaração da democrata à época:

“Isso gerou uma verdadeira sensação de pânico e horror entre os membros de nossa comunidade que, de outra forma, se envolveriam de forma ponderada nessas discussões, e alimentou a discussão até o ponto em que ficou claro que essa votação colocaria em risco uma grave involução do tecido comunitário de boa-fé que nos permite participar de forma responsável da luta pelos direitos humanos e pela dignidade em todos os lugares – da Palestina ao Bronx e ao Queens”.

De forma resumida, Cortez estava disposta a renunciar a sua tradicional defesa da Palestina para apaziguar os ânimos de seus apoiadores sionistas, como qualquer outra engrenagem política do Partido Democrata. 

Fica claro que a história da ex-garçonete que fez campanha para Bernie Sanders em 2016 e que, em 2018, desafiou o establishment do Partido Democrata nunca passou da mais pura ficção. Uma invenção necessária diante do esfarelamento dos dois pilares do regime político norte-americano: o Partido Democrata e o Partido Republicano. Cortez venceu as eleições, mas demonstrou ser apenas mais uma engrenagem de seu partido, apoiando o próprio Biden, que tem níveis de baixa popularidade inéditos para um presidente norte-americano neste século.

Stein, por outro lado, que nunca ganhou eleições, luta para registrar sua candidatura em todos os Estados norte-americanos, inclusive contra processos democratas que impedem seu registro. O partido de Cortez sabe que, se Stein estiver nas urnas, ela não “roubará” votos republicanos em Trump, mas votos democratas em Harris. Os verdes, ainda que de forma limitada, lutam, assim como outros partidos ainda menores, contra a ditadura bipartidária da burguesia norte-americana da qual Cortez, que ganhou três eleições ao Congresso, faz parte. Quem tem o melhor currículo?

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