“O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro, tudo o isola e o separa do restante na natureza – os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ônibus, a trama encarceradora da vida urbana….Mas que diferença, num cimo de monte com Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos pobres corpos. Todos são obras da mesma vontade.”
“Civilização” é um conto de pouco mais de vinte páginas que condensa um livro publicado postumamente por Eça de Queiroz: “A Cidade e as Serras” (1901). Nele fica condensada a história de Jacinto e sua transição entre a melancolia e o tédio da cidade e a vida em comunhão com a natureza, quando se dirige à Serra (ou ao campo) e experimenta uma vida despojada de suas máquinas de escrever, telégrafos, fonógrafos e tecnologias de utilidade discutível.
Trata—se de uma sátira do espírito cientificista típico do pensamento social e literário de fins do XIX e início dos XX, ou seja, o espírito do próprio tempo do escritor português.
Eça de Queiroz (1845/1900), como se sabe, foi o precursor do realismo literário em Portugal, o que se deu mediante a superação da tradição românticas portuguesa e a criação de uma nova literatura, mais crítica e atenta aos problemas sociais. Dentro desse movimento, chegou até mesmo a escandalizar a prosaica sociedade da época, denunciando em tom de comédia o falso moralismo beato no romance “O Crime do Padre Amaro” (1875), que retrata um relacionamento amoroso ilícito envolvendo um clérigo de um povoado do campo.
Se na chamada Questão Coimbrã, onde se chocou a velha tradição romântica representada por Antônio Feliciano de Castilho e os jovens precursores do realismo, liderados por Antero de Quental, a crítica de Eça de Queroz se dá em torno do passado, em “Civilização” sua crítica se dá em torno do presente: a conjuntura do fim do século XIX marcada pelo mito da função civilizatória da ciência, do determinismo que condiciona a situação social em meio e em raça, o darwinismo social, o positivismo e o seu mito de progresso ininterrupto através do exercício da razão.
Antes o realismo se voltou para o passado, criticando o falso moralismo subjacente ao idealismo romântico e agora atenta-se para novas tendências cientificistas e naturalistas, igualmente sujeitas à crítica na forma de deboche.
A crítica do conto se refere ao mito da civilização, que inclusive alçou o imperialismo britânico, alemão e francês ao neocolonialismo na África e Ásia, já que a sua intervenção espoliadora foi justificada na época como o “fardo do homem branco”.
Já no âmbito da literatura, a convergência entre o cientificismo e a arte encontrou sua mais evidente expressão no naturalismo. Este consiste num desdobramento e numa espécie de radicalização do objetivismo e impessoalismo que marca o realismo literário. Diferencia-se deste último movimento já que a análise psicológica dos personagens e os seus destinos são, no naturalismo, condicionados pelo meio social e por caracteres hereditários. Enquanto no realismo ainda se cogita de algum livre arbítrio, as personagens descritas pelos romances naturalistas têm o seu destino condicionado pelo meio social e pelos caracteres raciais, em consonância com as teorias cientificistas típicas do fim do século XIX. Ademais, há no naturalismo uma pretensão da descrição de pessoas e enredos de maneira parecida com que o cientista descreve fenômenos da natureza.
É este o caldo de cultura contra o qual Eça de Queiroz se insurge na forma de paródia em “Civilização”.
No conto, somos apresentados a um amigo do narrador chamado Jacinto, nascido num palácio, com quarenta contos de renda, terras e fazendas o suficiente para nunca precisar trabalhar e se preocupar com o pão de cada dia.
Mora numa casa nobre na cidade, onde coleciona todo o tipo de utilidade, esbanjando todas as últimas novidades e tecnologias que informaram aquele espírito imperialista de fins do XIX: colecionava máquinas de escrever, autocopistas, telégrafo morse, fonografo, teatrofone… Tinha uma biblioteca com 1800 obras, e cada cômodo da casa, do banheiro à cozinha, revelava todo tipo de bens que teriam supostamente a finalidade de tornar mais cômoda a vida do homem: diferentes variedades de torneiras, copos, garfos adaptados para cada tipo de comida, campainhas para chamar os criados…
E, com todos os recursos tecnológicos disponíveis, Jacinto parece estar sempre entre a melancolia e o tédio:
“Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz de inteligência, própria tudo o que a alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias de uma cidade chasquadora e céptica; uma varrida de sombra, mais librta e lisa do que o céu de Verão… E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcoveava, como sob um fardo injusto”.
Uma obrigação inadiável obriga Jacinto a passar uma temporada na Serra, o que seria uma zona rural fora da cidade, onde por lá viveram os seus antepassados, de igual origem de nobreza.
Mobiliza uma equipe de trabalhadores para carregar trinta e sete malas com todos os itens e utensílios que guarda na sua casa na cidade. Vai a contragosto e busca levar consigo a própria cidade, para lhe atenuar o sofrimento oriundo do seu afastamento da civilização.
No entanto, um lance de sorte faz com que as coisas ocorram exatamente da forma contrária como planejada: chegaram à fazenda sem as trinta e sete bagagens que foram extraviadas, e sem avisarem a tempo o responsável pela hospedagem, obrigando-os a viver tal qual a gente mais simples do campo.
Não tinham as luzes da cidade, podendo observar de forma diferente as estrelas. Não contavam com as distrações de livros inúteis e máquinas barulhentas. Comiam não se servindo de louça importada mas de uma colher de pau na mesma mesa que o povo da roça.
O contato com a beleza da natureza desperta no protagonismo um sentimento de pertencimento o qual lhe era ausente na cidade. Como mencionado, é possível ao personagem, quando confrontado com a exuberância de uma natureza divina, a percepção de pertencimento a uma só unidade, que pode ser a de um povo em comunhão com o criador. Ao passo que na cidade, o sentimento é de uma mera somatória de indivíduos, estruturados de forma atomizada.
Um ano depois, o amigo irá visitar Jacinto. Descobre que o seu camarada se mudara definitivamente para a Serra. Abandonou as leituras (e o horizonte filosófico) de Schopenhauer, o filósofo alemão pessimista, predecessor de Nietzsche e representativo do pensamento social da época. E agora, mais otimista, tem como horizonte filosófico o bucolismo, podendo ser um leitor de Virgílio.