Em uma de suas obras mais lidas, O Manifesto Comunista, Karl Marx explica um dos fatores que definem a época capitalista, a sociedade dominada pela burguesia: “todas as relações fixas e congeladas, com seu conjunto de preconceitos e opiniões antigas e veneráveis, são varridas, e todas as novas relações formadas tornam-se antiquadas antes que possam se ossificar. Tudo o que é sólido derrete no ar, tudo o que é sagrado é profanado […]”.
Como ainda vivemos no sistema capitalista, ainda que em sua etapa superior, de decadência, a constatação de Marx ainda se aplica. Ano após ano, crise após crise, o mundo passa por imensas transformações e eis que, no meio do caos, surge uma nova tecnologia: modelos de “inteligência artificial” geradores como o GPT, que gera texto, e DALL-E, um gerador de imagens.
Em 2023 já destaquei nesta coluna os usos inusitados da tecnologia. O GPT foi usado para lecionar um curso introdutório de Ciência da Computação nos Estados Unidos e até mesmo para ministrar uma missa na Alemanha. Este ano descobri uma nova utilidade, não através da imprensa, mas desta vez através de um colega de trabalho.
Valendo-se de uma funcionalidade disponível apenas para aqueles que pagam o serviço da OpenAI, meu colega criou um modelo especializado batizado de “Doutor GPT”. Para reproduzir um “Doutor GPT” próprio, individualizado, basta utilizar o mesmo prompt (texto introdutório que “explica” ao GPT como queremos que ele se comporte) e, conforme fazemos mais perguntas – ou visitamos sucessivamente o consultório virtual do Doutor GPT -, o atendimento fica cada vez mais personalizado. O médico digital ainda não pode receitar remédios controlados, mas seus diagnósticos e suas orientações são surpreendentemente razoáveis.
Deparando-me com essa situação absurda, fui pego por uma reflexão. Relações com uma máquina podem substituir relações humanas? Na minha opinião, de forma alguma. A pergunta correta seria: nossas relações humanas tornaram-se tão mecânicas e burocráticas que uma máquina pode substituí-las? Para essa pergunta, creio que a resposta seja sim.
Quem não foi a um consultório médico apenas para ser expulso de lá cinco minutos depois com uma lista de remédios para comprar? O médico sequer estava preocupado com as peculiaridades do seu caso, seu histórico. Não há sequer um diagnóstico, apenas um procedimento burocrático. De certa forma podemos dizer que o médico automático é superior ao humano.
Isso significa que eu ache que médicos devam ser substituídos por painéis de “autoatendimento”? Não. A relação entre médico e paciente sofreu duas transformações. Na primeira, foi do atendimento artesanal ao atendimento em larga escala, aos hospitais e laboratórios de exame, à saúde industrial. Como a norma no sistema capitalista não produzir para atender às necessidades sociais, mas para encher os bolsos dos capitalistas, essa transformação implicou uma perda significativa de qualidade, apesar do salto gigantesco na quantidade de pessoas que são atendidas. Na era imperialista neoliberal então, a queda de qualidade acompanha as filas para atendimento numa espiral destrutiva.
Nesse cenário, o “Doutor GPT” não é uma solução, mas é um ótimo exemplo de como certas atividades inerentemente humanas, como o atendimento médico, foram mecanizadas ou “profanadas” e transformaram-se num apertar de parafusos. Na sala de máquinas da saúde, os médicos transformaram-se numa casta burocrática, uma camada alta da pequena-burguesia que goza de inúmeros privilégios em nossa sociedade.
Assim, o “Doutor GPT” me deixa feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz porque é um tapa na cara dessa burocracia, mas triste porque é, para mim, um sinal da crise de nossos tempos. Relações sociais progressivamente sendo substituídas por relações virtuais, primeiro entre pessoas e agora entre pessoas e modelos estatísticos com comportamento muito similar ao de pessoas, mas nem tanto.
Modelos geradores têm esse mesmo efeito em outras áreas, como na arte. Livros criados pelo GPT ou ilustrações criadas pelo Dall-E ou Midjourney parecem suficientes para o público geral que não encontra alternativa à cultura enlatada produzida pela burguesia mundial. De certa forma, só expõem a forma mecânica que a nossa produção cultural adotou, transformando a arte num produto como outro qualquer, como uma torradeira ou um liquidificador.
Conversar com um médico é o mesmo que conversar com uma máquina que gera frases que muito provavelmente um médico diria? Talvez seja aqui no Brasil ou nos Estados Unidos, mas é possível que não seja o caso em Cuba, onde há um sistema de saúde pública decente. Ainda acho que há usos interessantes para esses modelos geradores, mas até o momento, seus usos apenas servem para escancarar a decadência da nossa sociedade, das nossas relações. Mas essa situação, como disse Marx, se tornará antiquada antes que possa se ossificar.