No artigo Congresso reclama de Dino porque perdeu chance de extorquir o Governo, publicado no Brasil 247, a colunista Tereza Cruvinel, comentando a sentença dada pelo ministro do STF Flávio Dino, que exclui dos limites do arcabouço fiscal as despesas com o combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, diz que “o que está incomodando setores do Congresso não é a excepcionalidade fiscal”, acrescentando que o problema dos parlamentares “é a perda de oportunidade para achacar o governo”. Independentemente do que se passa na cabeça dos parlamentares, o fato é que a medida é, realmente, uma arbitrariedade absurda, como indica a crítica de Cláudio Cajado (PP-BA) reproduzida pela jornalista na referida matéria:
“A competência para definir a exclusão da base dos gastos públicos de qualquer despesa, seja ela prevista ou não no orçamento, é exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo, não cabendo ao Judiciário fazê-lo (…) se não há previsão do governo nas despesas com fatores exógenos e excepcionais na previsão orçamentária, fica claro que houve erro, falha ou falta de previsibilidade da peça orçamentária enviada ao Congresso Nacional pelo governo federal.”
É detestável ter de dizê-lo, mas Cajado está absolutamente certo, e a esquerda, absolutamente errada. Em um regime orientado pelo que se compreende por Estado democrático de Direito, isto é, em que leis democraticamente criadas colocam freios à atuação do Estado e regulam seu funcionamento, o poder judiciário não pode tomar para si atribuições do Congresso.
À luz da Constituição Federal de 1988, o que Flávio Dino fez foi um atropelo da isonomia dos poderes e do Congresso Nacional. Pior ainda: submeteu um poder representativo e eleito pelo povo, colocando-o abaixo de uma burocracia, cujos membros não foram eleitos e nem de longe gozam de respaldo popular.
Seria possível, por exemplo, uma medida provisória do presidente Lula. Dino, no entanto, foi eleito para o Supremo por quem?
Ainda não se completou uma década inteira desde que o imperialismo decidiu extirpar o PT do governo, fazendo uso da burocracia judicial para isso. Em 2014, o próprio STF escandalizou o País quando, à revelia de qualquer lei e pelo interesse político que defende, interviu no Executivo e proibiu a então presidenta Dilma de nomear Lula como ministro da Casa Civil.
O episódio é um lembrete de que cada apoio às intervenções do Supremo é em si uma contribuição para o retorno a um cenário em que o PT fatalmente se tornará o alvo das perseguições judiciais. Ao alimentar essa política de intervenção judicial, o partido não faz outra coisa além de criar um ambiente em que os direitos democráticos e a soberania do Executivo ficam em xeque.
A ingerência do Judiciário em questões que deveriam ser tratadas pelo Executivo e pelo Legislativo não apenas compromete a separação de poderes, mas ataca frontalmente um princípio constitucional protegido por cláusula pétrea:
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
- 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes [grifo nosso];
IV – os direitos e garantias individuais.”
Em tempos de “defesa da democracia”, não existe agressão maior à ordem constitucional do que a medida arbitrariamente tomada do Dino. Que isso seja feito sob aplausos de um setor da esquerda apenas revela que essa “defesa da democracia” não passa de uma pantomima.
O apoio acrítico às intervenções golpistas do Judiciário não é apenas uma questão de estratégia política mal calculada. Isso desarma a esquerda para enfrentar a direita quando a onda de golpes de Estado que assola a América Latina chegar ao País.
A perpetuação de um clima de insegurança jurídica pode levar a consequências desastrosas, que comprometem não apenas o futuro do governo, mas do Brasil. Um verdadeiro regime democrático passa pela defesa dos direitos fundamentais e pela submissão dos agentes estatais ao que a lei ou a Constituição autorizam. O oposto disso é a ditadura que a esquerda diz combater, mas, na prática, ajuda a construir.