No artigo Ascensão da extrema-direita: por que justamente agora?, escrito por Henrique Canary e publicado no sítio Esquerda Online, o autor questiona o fato de a extrema direita ter se tornado um fenômeno marcante e não em crises anteriores, como “a crise do petróleo em 1973, a crise da dívida na década de 1980, a ‘crise das .com’ em 2000”. Esse crescimento da extrema direita, segundo Canary, seria o fator responsável por reviravoltas como “levante da Praça Maidan, na Ucrânia, que tinha, em seu início, uma importante presença da esquerda, criou um regime que normaliza o nazismo histórico e incorpora forças abertamente fascistas no exército do país”, tendo no entanto o cuidado de não especificar que “esquerda” era essa, o que faz toda a diferença para a correta avaliação desta e de outras mobilizações ocorridas na década passada. Diz Canary:
“Ao explodirem processos de luta, as forças do progresso histórico representadas pelo socialismo se veem incapazes de disputar a direção dos eventos e são afastadas com a maior facilidade pela ultradireita. A esquerda esteve presente em junho de 2013 no Brasil, mas foi expulsa das manifestações pela extrema-direita organizada; lutou na Praça Maidan em janeiro de 2014, mas foi massacrada aos gritos de ‘Slava Ukraini’ e acabou queimada no incêndio da Casa dos Sindicatos de Odessa em maio do mesmo ano.”
Aqui se vê claramente a confusão do autor com a verdadeira natureza do identitarismo. Isso porque o Maidan ucraniano foi, desde o início, uma manifestação de tipo “Revolução Colorida”, a exemplo de tantas outras impulsionadas pelo imperialismo para derrubar governos nacionalistas e instalar fantoches nos países-alvo. O truque para enganar “democráticos” de todo o mundo e não entregar o jogo foi incluir os LGBTs nas manifestações.
A premissa era de que, com a entrada do país na União Europeia, os homossexuais teriam as liberdades civis dos seus pares na Inglaterra, na França e na Alemanha. A Ucrânia, contudo, não é esses países, uma lição que rapidamente foi lembrada aos desavisados.
Dividindo uma longa fronteira com a Rússia, o país é perfeito para ser usado como base em uma ofensiva contra o colossal vizinho. O interesse da UE e dos EUA era nessa fronteira, nunca nos LGBTs ou qualquer setor minoritário da população ucraniana, colocados em marcha para a derrubada do governo nacionalista de Viktor Yanukovytch. Como chamar de “esquerda” um movimento que defendia a submissão da Ucrânia à União Europeia é um mistério, mas isso foi o que parte da esquerda aloprada defendeu e visivelmente, Canary acreditou.
É evidente que o identitarismo foi instrumentalizado para revestir mobilizações como o Euromaidan de uma aura progressista, enganando muitos analistas que, como Canary, não enxergam além das aparências. O imperialismo se aproveita dessa falta de profundidade política para disfarçar suas verdadeiras intenções, mascarando a derrubada de governos nacionalistas como “lutas democráticas” e “pela liberdade”. O uso de minorias como os LGBTs, em movimentos patrocinados pelos governos das nações desenvolvidas é uma estratégia que visa angariar o apoio da opinião pública, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, e também entre a esquerda do país-alvo.
A análise de Canary é sintomática de uma esquerda pequeno-burguesa que se desconectou das massas. Ao abraçar uma política que não representa os interesses fundamentais da classe trabalhadora, essa esquerda abriu espaço para que a extrema-direita ganhasse força, não apenas na Ucrânia, mas em várias partes do mundo. Isso, mais do que qualquer coisa, está na raiz do problema central analisado por Canary e renova o acerto de Trótski ao declarar que a crise do movimento operário é uma crise de suas direções.
Ao tornar-se fiadora da “democracia”, a esquerda permitiu ser identificada com o sistema político e econômico decrépito odiado pelas amplas massas, que no momento, só encontram expressão para esse repúdio na extrema direita, que em parte por conveniências oriundas das disputas no interior da burguesia e em parte por demagogia, captura o sentimento anti-sistema dominante no Brasil, na Europa e nos EUA. E a política woke é fundamental nesse processo de domesticação da esquerda.
É preciso, portanto, entender que o identitarismo é um instrumento ideológico do imperialismo. Ele serve para fragmentar a classe trabalhadora e desviar o foco das lutas fundamentais contra o capital e o imperialismo, colocando em primeiro plano questões que, embora importantes, são insuficientes para alterar a estrutura de poder. Ao insistir em uma leitura superficial dos eventos, Canary ignora essa dinâmica e, como consequência, acaba por reforçar a confusão entre setores da esquerda.
A verdadeira esquerda deve estar comprometida com a luta contra o imperialismo, e isso significa rejeitar as falsas narrativas construídas em torno de movimentos que, na superfície, parecem progressistas, mas que, no fundo, servem aos interesses das potências imperialistas. Essa é a lição que deveria ser tirada das experiências de 2013 no Brasil e da Praça Maidan na Ucrânia é a de que a esquerda precisa se reorganizar em torno de uma política que em nosso período histórico se traduz, principalmente, pela luta anti-imperialista, recusando-se a ser cúmplice de projetos que enfraquecem a luta de classes.
A ingenuidade de Canary ao tratar movimentos patrocinados pelo imperialismo como lutas legítimas da esquerda é um exemplo claro da confusão ideológica que enfraquece a capacidade da esquerda de liderar os trabalhadores em um momento histórico de profunda crise. É preciso superar isso, o que implica, necessariamente, em apoiar a Rússia contra os nazistas ucranianos, a Resistência Palestina contra a ditadura sionista, a Venezuela contra os “guarimberos” e todos os movimentos que lutam contra o imperialismo no mundo. Essa é a luta fundamental do mundo e falhar nisso só irá reforçar o fenômeno identificado por Canary.