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Ric Jones

Médico homeopata e obstetra. Escritor, palestrante da temática da Humanização do Nascimento no Brasil e no exterior.

Coluna

As lágrimas de Warren

178 anos de um fato milagroso - a anestesia

Na manhã daquele dia, no distante 16 de outubro de 1886, Gilbert Abbott – um homem tuberculoso que vivia em Boston e que ostentava um vistoso tumor submaxilar – sentou-se em uma cadeira de couro vermelho, pensando que aquele poderia ser seu derradeiro dia de vida. Em seu rosto pálido parecia não correr uma gota sequer de sangue quando encarou, à sua frente, a equipe cirúrgica que se aprontava para efetuar a operação de retirada da tumoração. No centro da equipe, ladeado por nomes como Gould, Townsend, Bigelow e Hayward estava John Collins Warren, um dos mais famosos cirurgiões dos Estados Unidos à época. Gilbert Abbott sabia que seu sofrimento poderia ser excruciante, talvez fatal, mas por certo não seria demorado: uma quantidade imensa de dor concentrada em alguns poucos minutos, se tanto. É importante entender que em meados do século XIX as cirurgias eram necessariamente muito rápidas, pois a velocidade dos cortes era o que permitiria a possibilidade de sobrevida. Os cirurgiões eram verdadeiros “açougueiros”, hábeis na capacidade de cortar os tecidos e serrar ossos com precisão e rapidez. Não havia tempo a desperdiçar; amputações de membros inferiores, em geral por gangrena, eram realizadas em 30 segundos, “pele-a-pele” – habilidade preciosa que tornou famoso o cirurgião escocês Robert Liston. Eram homens embrutecidos pelo trabalho com a dor, o sofrimento e a morte. Tinham um aspecto sujo, grosseiro e bruto e suas ações eram marcadas pela frieza e por um temperamento impávido.

Naquele diz um ator diferente havia sido aceito para participar da cena cirúrgica. O dentista Thomas Green Morton estaria disposto a demonstrar os efeitos sedativos de uma substância que havia experimentado com sucesso na sua prática de odontologia, quando conseguira extrair dentes de pacientes sem que estes experimentassem dor. Para isso uma grande plateia se preparava para assistir à apresentação, ainda que a maioria acreditasse em um retumbante fracasso e um vexame para seus protagonistas.

– Em nossa próxima cirurgia utilizaremos uma substância preparada por um certo senhor Morton, a qual ele atribui a capacidade de tornar insensíveis à dor aqueles que a aspirarem.

As palavras de Warren eram pura arrogância e incredulidade. Na sua visão até então, esses sujeitos e suas “novidades” nada mais eram do que embusteiros, picaretas, farsantes e aproveitadores da credulidade pública. Na plateia de médicos e estudantes ouviram-se risos quando do anúncio. Como ousava alguém abolir a sensação dolorosa que nos foi oferecida pelo Criador como castigo por nossos pecados mortais? Quem poderia ter a pretensão e a ousadia de mudar o que de humano existe em cada dor, cada sofrimento? O clima estava preparado para o deboche, o escárnio e a humilhação pública do pobre dentista; os presentes estavam prontos para uma ruidosa gargalhada.

Thomas Morton aproximou-se e perguntou ao paciente Abbott se ele estava com medo, ao que ele respondeu negativamente. Aproximou dele o globo de vidro repleto de éter sulfúrico (ou éter etílico), substância que era conhecida pelos trabalhadores dos circos há muitos anos como “gás hilariante”, muito usado em suas apresentações. Acercando-se de Abbott, trouxe a cânula para perto de sua boca, pedindo que aspirasse vigorosa e profundamente. “Vai tossir um pouco – avisou – mas logo passa”. Em poucos instantes os lábios do paciente se afrouxaram; logo após os braços penderam ao longo do corpo e perderam o tônus. A mandíbula afrouxou e Abbott passou a dormir como um cordeirinho. Morton voltou-se para John Warren e exclamou, pela primeira vez confiante:

– O paciente está à sua espera, Dr Warren

Deixo aqui a descrição do livro “O Século dos Cirurgiões“, de Jürgen Thorwald, sobre os fatos testemunhados por aqueles que se acotovelavam na arquibancada da sala de cirurgia do Hospital Geral de Massachusetts na histórica data de 16 de outubro de 1846:

“Warren curvou-se em silêncio para Abbott. Impassível como sempre, arregaçou os punhos, tomou o bisturi. E logo, com um movimento fulminante, desferiu o primeiro golpe. Fizera-se na sala silêncio absoluto; ouvir-se-ia perfeitamente a menor manifestação de sofrimento, um gemido, um suspiro. Porém, o paciente não se movia, não se defendia. Perturbado, pela primeira vez, Warren curvou-se mais sobre o operado, praticou a segunda incisão, a terceira, muito profunda. Dos lábios de Abbott não saiu um som. Warren extraiu o tumor. Nada! Nem um ai! Warren cortou as últimas aderências, colocou a ligadura, passou a velha esponja, para limpar o sangue…

E nada… só silêncio… sempre silêncio…

Warren endireitou-se, empunhando ainda o bisturi; estava mais pálido que de costume e o trejeito sarcástico desaparecera dos seus lábios; faíscas saíam dos seus olhos, cheios da luz do prodígio misterioso, inconcebível e, até instante atrás, inacreditável…

– Isto – pronunciou afinal o grande cirurgião – não é nenhum embuste…

De improviso, nas suas faces engelhadas, ressequidas, cintilou um brilho úmido. Warren, o soberbo, o lacônico, o coração empedernido, Warren o homem avesso a toda manifestação de sentimento, chorava.”

Mais de 178 anos já se passaram desta cena memorável, inaugurando a era da cirurgia moderna e o uso da anestesia como elemento indispensável em todo o procedimento cirúrgico, livrando a humanidade de uma história de milênios de dores e sofrimentos. A partir desta data, a possibilidade de corrigir o corpo humano através da invasão pelo bisturi passou a ser uma realidade. Também a partir desse momento, inaugurou-se o nascimento cirúrgico moderno, em que a sobrevida de ambos, mãe e bebê, se tornou a norma. Todavia, se é lícito questionar os abusos desta cirurgia nos tempos atuais, também é justo saudar essa incrível façanha do gênio humano. Aos médicos e a todos que se dedicam a minorar as dores daqueles que sofrem, nossa homenagem neste dia 18 de outubro, dia do médico.

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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