Na semana passada, discutíamos o significado da redução da taxa oficial de desemprego, comemorada não só pelo governo como pela burguesia. Nossa reflexão partia da sensação de que as coisas não vão tão bem assim na vida real. O problema dessa defasagem entre a percepção da realidade e a estatística vem do fato de que o índice calculado pelo IBGE afere a situação de uma parte da população, aquela que ainda está no mercado formal de trabalho ou que ainda não desistiu de tentar uma vaga com carteira assinada, ou seja, com garantia de direitos e aposentadoria num futuro, ainda que longínquo.
Fora desse grupo, há milhões de pessoas que passam ao largo da construção do índice. Muitas dependem de programas sociais, como o Bolsa Família, e muitas vivem de “bicos”, que, com grande dose de boa vontade, são consideradas “empreendedoras”. Diga-se que a diferença entre o biscateiro e o microempreendedor é que este último tem um registro de MEI, que o transforma, nominalmente, em “empresário” na medida em que cria impostos e regras para ele receber por trabalhos avulsos.
O “PJ”, ou pessoa jurídica, é outro personagem desse mercado de trabalho “flexível”, que paga impostos de empresa e trabalha sem direitos, muitas vezes sem horário nem fim de semana ou feriado, para um empregador, que, formalmente, contratou uma “empresa prestadora de serviços”. Os trabalhadores registrados em carteira, em geral, recebem um ou dois salários mínimos. Como são “privilegiados” por terem contrato formal de trabalho (CLT), seus salários são mais baixos para aliviar os empregadores dos “encargos sociais”. Para ganhar mais, só sendo “PJ”.
Diante desse cenário, quando os sindicatos estão pouco atuantes, com muita gente deixando de contribuir com eles, surge repentinamente uma discussão sobre redução de jornada de trabalho… no TikTok. Um “influenciador social” chamado Rick Azevedo, uma espécie de Pablo Marçal do PSOL, conseguiu eleger-se falando diretamente com os trabalhadores do comércio, que fazem a jornada 6×1. Aparece propondo uma redução de jornada para 4×3.
Como o DCO revelou, o sujeito criou um “movimento social” pra chamar de seu. Registrou o nome e a prerrogativa “apartidária” do dito “movimento” como marca de uso próprio. A história está bem contada aqui.
Coisas desse tipo não são sérias e não servem para organizar os trabalhadores em torno de uma reivindicação justa. O sujeito conseguiu melhorar a própria jornada, agora como vereador na cidade maravilhosa, mas nada indica que sua proposta tenha alguma chance de vingar sem redução de salário. A intenção de Rick, que fez questão de esclarecer que o “seu” movimento é apolítico e apartidário, parece ser a de atrair empresários para algum “novo modelo” de contratação, uma espécie de “uberização” generalizada. Um vereador do PSOL na Câmara pode ser útil para alavancar um projeto com cara de social que favoreça os ricos, como, de resto, é o modus operandi das políticas identitárias.
Trocando em miúdos, o projeto acenaria com a flexibilidade de jornada atrelada a um aumento de produtividade: o trabalhador deixaria de receber por hora trabalhada e passaria a receber por tarefa entregue, restando a ele administrar o tempo. Mas como fazer isso no caso de um trabalhador de shopping ou caixa de supermercado? A inteligência artificial pode ajudar a criar um sistema poderoso de vigilância, que calcule o ritmo de cada trabalhador: quantos produtos por hora um caixa de supermercado passa pela esteira? Coisas desse tipo. Com a medição da intensidade do trabalho, pode-se criar a remuneração com base em produtividade. Vale observar o comentário de Geraldo Alckmin sobre o tema: “Isso não foi ainda discutido, mas acho que é uma tendência no mundo inteiro. À medida que a tecnologia avança, você pode fazer mais com menos pessoas, você ter uma jornada menor. Esse é um debate que cabe à sociedade e ao parlamento”.
Não é difícil imaginar que, nesse sistema, férias e folgas deixariam de ser pagas como direito e passariam a ser opcionais, sujeitas à administração pessoal do salário, exatamente como na uberização e na pejotização.
A mudança em curso está na supressão da relação de trabalho empregado-empregador, que prevê proteção ao trabalhador, a parte mais frágil. Enfraquecem-se os sindicatos e a Justiça do Trabalho. Desde Michel Temer, o trabalhador demitido já arca com custas processuais em caso de reclamação trabalhista não atendida, o que horizontaliza a relação, como se empregador e empregado estivessem no mesmo nível de poder.
O trabalhador registrado que, porventura, tiver um registro MEI para completar o salário com trabalhos avulsos perde o direito ao seguro-desemprego em caso de demissão sem justa causa – afinal, ele é um “empresário”. A “boiada” já vem passando há bastante tempo. Hoje, muitos trabalhadores jovens nem sabem o que é ser registrado. Com essa possível mudança, acaba a aposentadoria e, como já é estimulado hoje, os jovens passam a contratar previdência privada de bancos.
Não é difícil imaginar que haja um projeto maior em torno de uma mudança radical nas relações de trabalho. A ONG americana 4 Day Week Global, na qual se inspira o Marçal do PSOL, defende a redução de jornada com base em manutenção da produtividade e no “acompanhamento de métricas”. Exatamente como a política identitária, o movimento-marca de Rick Azevedo captura uma reivindicação social e a embala para presentear a burguesia.