Previous slide
Next slide

Forças Armadas

A tutela ongeira contra a história do Brasil

Tentativa de associar os militares do final do século XIX aos generais golpistas de hoje demonstra completa falta de rigor analítico, sendo anacrônica e desonesta

O historiador e professor titular da UFRJ Chico Teixeira publicou no portal Brasil 247 uma coluna intitulada Tutela Militar, dando seus pitacos sobre dois pontos marcantes da história nacional, utilizados como exemplo do que chama de “folclores nacionalistas”, responsáveis por acobertar a tutela das Forças Armadas sobre o País, fenômeno que segundo Teixeira, remonta à expulsão dos holandeses de Pernambuco. Diz o autor:

“Dois eventos históricos, já seculares, informam a doutrina militar hoje vigente na República. O primeiro é o chamado ‘Espírito de Guararapes’, ou seja as condições em que se deram as lutas pela expulsão dos holandeses do Nordeste no século XVII. A partir de uma visão teleológica, finalista, a expulsão dos holandeses aparece como um esforço ‘patriótico’ de todos os brasileiros contra o ‘estrangeiro’ que ocupava parte do país.”

A loucura começa com o revisionismo em “a expulsão dos holandeses aparece como um esforço ‘patriótico’ de todos os brasileiros contra o ‘estrangeiro’ que ocupava parte do país”. Mais rigoroso que o acadêmico da UFRJ, o historiador português Veríssimo Serrão apresenta a seguinte apreciação do maranhense André Vidal de Negreiros, um dos líderes da revolução ocorrida então, na obra História de Portugal: A restauração e a monarquia absoluta (1640-1750) (1977):

Dirigiu as operações de guerra até 1654, sendo, na opinião de Varnhagen [historiador brasileiro], o grande artífice da expulsão dos holandeses. A Coroa utilizou, depois deu valimento como governador das Capitanias do Maranhão (1656-1666) e de Pernambuco (1657-1661 e 1667), mandando-o também governar o Estado de Angola (1661-1666). Embora o considere um valente cabo de guerra, Charles R. Boxer limita o papel de Negreiros na chefia do movimento, por considerar que foi João Fernandes Vieira o principal herói da reconquista de Pernambuco.

Além de Negreiros, bandeirantes paulistas como Paulo Dias de Novais (rigorosamente, nascido em Vila Real, Portugal, mas radicado em São Paulo), Fernão Dias Paes Leme e Antônio Raposo Tavares se notabilizaram pela participação decisiva na campanha de expulsão dos holandeses, atuando junto ao pernambucano João Fernandes Vieira. Para o iluminado acadêmico identitário, no entanto, nada disso teve grande importância para o nascimento de um sentimento patriótico, a partir da união de armas contra um invasor estrangeiro:

“Um único documento, onde um dos rebelados – em especial contra a cobrança de dívidas por parte dos holandeses – fala em ‘pátria’ serve de ‘prova’ da fundação do Brasil. Não atentam os especialistas militares para o fato de que a pátria era, então, o Pernambuco, ou seja, simplesmente o lugar de nascimento, como era uso comum tanto na Península Ibérica quanto na França.”

Ora, independente de qual substantivo usaram (o que francamente, não tem a menor importância para o debate), o fato soberano é que representantes de toda a Colônia se uniram, lutaram e expulsaram um invasor. A disposição em atacar a história nacional é tamanha que Teixeira procura justificar a ocupação holandesa, como se as alegações apresentadas merecessem qualquer consideração, salvo como demonstrativas do cinismo que tradicionalmente marca as relações internacionais ainda hoje.

Por fim, os ataques de Teixeira contra o Brasil miram no que esse País tem de melhor: o seu povo. 

“Tal ‘Nação’ estaria contida e representada na presença do branco – como João Fernandes Vieira, escravista, Senhor de engenho endividado com banqueiros de Amsterdã; Felipe Camarão, indígena criado e educado por jesuítas e nomeado com o nome do rei de Espanha; e Henrique Dias, filho de escravizados africanos – enquanto líderes ‘patrióticos’.

Assim, a pretensa ‘síntese’ das três raças ‘tristes’, conforme a fantasia poética de Olavo Bilac, opera a construção precoce, anterior aos casos europeus, do ‘nascimento’ do Brasil.

(…)

Nem negros escravizados, nem índios aldeados em torno das missões católicas tiveram quaisquer ganhos com a vitória – considerada feito militar maior – colonial portuguesa sobre os holandeses.

Nada mudou as condições de vida ou respeito histórico, como atesta a luta letal contra o Quilombo dos Palmares, culminando no Massacre do Povo Negro da Serra da Barriga em 1695 ou o genocídio dos cariris em 1682.”

Chama atenção que, em tempos onde o identitarismo clama por “representatividade” para negros e índios, quando verdadeiros heróis nacionais como Felipe Camarão e Henrique Dias aparecem, alçados a essa categoria não por critérios ideológicos, mas pela participação ativa em um feito histórico da máxima importância, ambos são desprezados e por eventos sem relação com o fato em si, mas distintos, próprios da evolução contraditória da humanidade. O mesmo critério (ou falta de) é usado para atacar outro evento determinante da saga brasileira ao longo da história: a Proclamação da República.

“Da mesma forma, o golpe de Estado Militar de 1889, o segundo evento histórico apropriado pela Direita nacionalista e militar,  é visto como nascimento da República – sem considerar o republicanismo democrático de 1789 ( Minas Gerais) e de 1799 (Bahia).

Em 1889 os militares teriam incorporado o decaído ‘Poder Moderador’ exercido pelo Imperador, não recepcionado na Constituição de 1891. Assim, incorporado aos “deveres” de um inexistente ‘Poder Militar’, passaria a ser dever militar vigiar e controlar a República.  Em cartilhas (sic!), currículos e textos tais eventos seriam a base histórica de Forças Armadas muito mais voltadas para a manutenção do status quo interno do que para a defesa da soberania nacional.”

“Por esta via estruturou-se a noção de uma ‘tutela militar sobre a República’, base doutrinária das Forças Armadas, e plenamente recepcionada por organizações militares como as Forças Especiais, chamada de ‘kids pretos’.”

Teixeira tenta equiparar a Proclamação da República a uma manobra oportunista e reacionária, ignorando completamente os elementos progressistas e revolucionários que compuseram o movimento republicano, do qual o golpe militar de 1889 foi apenas a coroação de uma ampla campanha nacional, enorme, embora ignorada pelo historiador. O republicanismo, no final do século XIX, estava intimamente ligado ao movimento abolicionista, cuja pressão popular e articulação política foram fundamentais para o fim da escravidão em 1888. É impossível compreender a proclamação da República sem considerar essa história, que uniu forças democráticas, progressistas e abolicionistas em um momento de transformação radical.

Os principais líderes republicanos, como Benjamin Constant e Monteiro César (posteriormente morto na Guerra de Canudos), eram fortemente influenciados pelo positivismo, uma ideologia que defendia o progresso, a ciência e a separação entre religião e Estado, sendo uma doutrina filosófica bastante esquerdista, ao contrário do que pensam os críticos anacrônicos. Essa visão, de caráter revolucionário para a época, posicionava o movimento republicano como antítese ao conservadorismo monárquico e clerical.

Diferentemente da visão que tenta vincular os militares de 1889 aos militares subservientes ao imperialismo norte-americano que surgiram no século XX, os militares republicanos do final do século XIX eram orientados por ideais emancipatórios. Esses homens estavam muito mais próximos das lutas sociais e políticas do que seus equivalentes contemporâneos, que representam os interesses reacionários do imperialismo no País.

Teixeira incorre no erro grosseiro de comparar momentos históricos completamente diferentes, o que não só enfraquece sua argumentação, mas revela a superficialidade de sua análise. Ele ignora, por exemplo, que mesmo depois, as Forças Armadas brasileiras continuaram tendo um papel crucial o desenvolvimento progressista da nação, em eventos como a Coluna Prestes e as mobilizações contra a República Velha nos anos 1920, além de participarem ativamente das revoluções de 1930, que buscaram romper com a ordem oligárquica e inaugurar ciclo político no Brasil, industrializando a nação como parte de um programa dedicado à defesa do País, aqui sim, de maneira consequente. Esses eventos demonstram que os militares, em muitos momentos da história, estiveram alinhados a causas progressistas, diferentemente do papel reacionário que passaram a desempenhar sob influência norte-americana, sobretudo após o golpe de 1964 e o expurgo em massa dos militares verdadeiramente nacionalistas.

A tentativa de associar os militares do final do século XIX aos generais golpistas contemporâneos demonstra uma completa falta de rigor analítico. É anacrônico e intelectualmente desonesto comparar os articuladores da República — que viam no republicanismo uma via para superar o atraso do latifúndio defendido pela Monarquia e estruturar um País mais moderno — com os militares de hoje, cujo papel se resume a servir aos interesses de potências estrangeiras e manter a submissão econômica e política do Brasil. Essa abordagem revela não apenas ignorância histórica, mas também uma cumplicidade, ainda que velada, com a propaganda dedicada a deslegitimar os avanços alcançados ao longo da história brasileira.

Ao insistir em um revisionismo que distorce os fatos e desqualifica eventos fundadores da nossa história, como a proclamação da República, Teixeira acaba por fazer coro com aqueles que atacam a soberania e a identidade nacional. Sua crítica à história da nação e em especial às Forças Armadas não passa de uma condenação superficial ao bolsonarismo, sem compreender as raízes mais profundas do papel que os militares desempenharam em outros momentos históricos. No fundamental, sua posição não se diferencia dos que servem ao ataque ao Brasil e ao povo brasileiro, colocando-se como instrumento da propaganda identitária, dedicada ao mesmo ataque, oriunda dos mesmos patrões do bolsonarismo e dos militares golpistas: o imperialismo.

Gostou do artigo? Faça uma doação!

Rolar para cima

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Diferentemente de outros portais , mesmo os progressistas, você não verá anúncios de empresas aqui. Não temos financiamento ou qualquer patrocínio dos grandes capitalistas. Isso porque entre nós e eles existe uma incompatibilidade absoluta — são os nossos inimigos. 

Estamos comprometidos incondicionalmente com a defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo pobre e oprimido. Somos um jornal classista, aberto e gratuito, e queremos continuar assim. Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.

Quero saber mais antes de contribuir

 

Apoie um jornal vermelho, revolucionário e independente

Em tempos em que a burguesia tenta apagar as linhas que separam a direita da esquerda, os golpistas dos lutadores contra o golpe; em tempos em que a burguesia tenta substituir o vermelho pelo verde e amarelo nas ruas e infiltrar verdadeiros inimigos do povo dentro do movimento popular, o Diário Causa Operária se coloca na linha de frente do enfrentamento contra tudo isso. 

Se já houve um momento para contribuir com o DCO, este momento é agora. ; Qualquer contribuição, grande ou pequena, faz tremenda diferença. Apoie o DCO com doações a partir de R$ 20,00 . Obrigado.