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Antônio Vicente Pietroforte

Professor Titular da USP (Universidade de São Paulo). Possui graduação em Letras pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Linguística pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Linguística pela Universidade de São Paulo (2001).

Coluna

A poesia de Eduardo Lacerda

A poesia sentimental continua em alta

Na crítica literária, frequentemente, debate-se o valor da poesia cerebral em contraste com a poesia sentimental; entretanto, se considerarmos a arte somente entre o cérebro e o coração, talvez seja difícil definir poemas tais quais “Dos males o menor”, de Leila Míccolis:

“Se eu te chamo de putinha / sou machista e indecorosa! / No entanto, se não chamo, / você não goza…”

Ainda em função do corpo humano, “Dos males o menor” não seria poema cerebral nem cardíaco… desse ponto de vista, ele seria genital. Valer-se do corpo humano para tratar de literatura não é novidade, sendo o cérebro, o coração e os genitais os domínios, respectivamente, das poesias experimental, sentimental e erótica.

Sem querer limitar a literatura a tais comparações com o corpo humano, nela há, pelo menos, a vantagem de apresentar a poesia em três regimes distintos de realização, garantindo à arte não ser sancionada por apenas um único parâmetro; em outras palavras, cada parte do corpo oferece modos próprios de se fazer poesia, embora eles possam ser combinados na composição do poema. Dessa maneira, conquanto eu prefira as poesias do cérebro e dos genitais, é impossível não gostar de poesia sentimental; quando afirmo isso, penso em Federico Garcia Lorca, lembrando-me de poemas como “Manancial”, do “Livro de poemas”, de 1921.

Falando em poesia sentimental, eu recomendaria ler “Outro dia de folia”, do Eduardo Lacerda, lançado em 2012 pela editora Patuá. Conheci o Eduardo quando ele fazia os cursos de português e linguística na FFLCH-USP; na época, ele já militava pela poesia na direção da revista “Metamorfose” e do jornal “O casulo”; atualmente, ele é editor da Patuá, uma das raras editoras dedicadas à publicação de literatura brasileira contemporânea.

Em geral, começar pelas capas não é procedimento recomendável para ler poesia porque, nas mãos das editoras comerciais, os autores perdem o controle dos próprios livros; entretanto, no caso da Patuá, isso pode ser diferente, pois, certamente, houve alguma comunicação entre o Lacerda e o Leonardo Mathias, responsável pela capa e pelas ilustrações. Desse modo, em “Outro dia de folia”, Mathias foi sensível aos poemas e conseguiu captar, no desenho feito para a capa, a imagem de poeta que Eduardo, mediante os poemas, parece afirmar.

Nas leituras de “Outro dia de folia”, encontrei o escritor tematizando, nos 31 poemas de “Festim”, a primeira parte do livro, a contradição festa vs. castigo, enquanto na capa do livro, reproduzida no final da coluna, tal contradição se explícita: no título, sobre o desenho, afirma-se a festa na frase título “outro dia de folia”; no desenho, sob a legenda, um menino com chapéu de cone amarga o castigo, sentado em silêncio diante das paredes.

No segundo poema da primeira parte, também chamado “Festim”, expressa-se o tema festa vs. castigo:

“Jogou copos contra / Paredes. // Mudou de letra, com / caligrafia e sessões / terapêuticas, dando- / se firmeza às mãos. // Rabiscou espelhos / não sendo ele / sua própria // letra. // Lençóis amassados e / marcas de unhas / nas costas. // Cheiro de cigarros, / bebida, suor / e incenso. // – os poucos amigos, / dispersos, // juravam que vivia / em festa. –”

Em linhas gerais, o poema se desenvolve entre festas e castigos: (1) na primeira estrofe, manifesta-se a revolta quando copos são jogados contra a parede; (2) da segunda à quarta estrofe, processos de adaptação social alienam o poeta da própria voz, afirmando-se o castigo nas sessões de caligrafia, terapia, quebras do espelho; (3) na quinta e sexta estrofes, surgem os dias de folia, a resistência via a presença do corpo e a alteração dos estados consciência; (4) na sétima estrofe, a contradição festa vs. castigo se manifesta no fato de haverem amigos, mas eles são poucos e dispersos; (5) na última estrofe, “juravam que vivia em festa”, explicita-se a ironia do poeta parecer festejar, todavia, talvez não seja bem assim…

Na poesia do Lacerda, como essa contradição se resolve? Em seus poemas, além da recorrência ao tema, o escritor remete, constantemente, a uma identificação bastante cara ao poetas sentimentais: escrever é viver / viver é escrever. Para mostrar isso, escolhi o poema “Essa viagem”, dedicado a Elisa Andrade Buzzo:

“É certo, Elisa, / estamos todos / à deriva. Nessa / página (barco / branco): Vida. / (Vida que chamamos livros) // Mais ainda, e / mesmo que / naufragados: / – minha amiga, / a dor nos estiva. / (Dor que chamamos escrita) // Fio que, fio a / fio, a fina linha / da trama nos / livra, e labirinta: / margem infinita. / (Margens abertas nas mãos) // Sigo, e me siga / em rota marinha, / e nessa medida: / ler de litro a / letra líquida. / (O olho que lê, ele lagrima) // Finda o canto / da musa / antiga. // (bússola / feita de verso) // No fundo de / nossa / retina. // Doer ainda é um / que navega // e caminha // sozinho. // Que nos escreve, / E nos cita.”

Nos versos do poema, viver é estar, mesmo à deriva, nas páginas dos livros… ao que tudo indica, vive-se apenas literariamente. Se isso procede, na poesia do Lacerda, na tensão entre os mundos possíveis e suas poéticas, aparece, no lugar do enunciador poeta, o enunciador poema, “Que nos escreve, / E nos cita”; ao nos tornamos tema da poesia, estaríamos salvos – em festa –, mesmo que solitários – ainda de castigo –. Eis o poema “Reflexos”, dedicado a Vlado Lima, no qual Lacerda e seus amigos, citados e escritos nos versos, estariam a salvo:

“Eu e / meus amigos, // tão sozinhos / que derramaremos / (aos litros) // álcool // aos // santos // e // espíritos. // Tão sozinhos que nos indagaremos: // – Eles também nos verão em dobro?”

Em sua utopia literária, Eduardo Lacerda não investe em quaisquer banalizações poéticas enquanto forma de salvação; o poema “Cantiga”, dedicado ao Reynaldo Damázio, é um sinal de alerta:

“Tenho ido / um mínimo possível / pelo rastro / de fogos de artifício. // Meus ouvidos / são só recusa ao / som de hinos. // (Não peço esmola, / ouço o que nos sobra / : ruído e disparo) // Tenho ido / pelo mesmo caminho / contínuo. // E, antes que eu chegue, cheguem / sempre à minha frente, sem festa / (e aos gritos), fogos de artifício.”

Por fim, quero manifestar minha admiração pelo Eduardo Lacerda e por seus trabalhos a favor da literatura brasileira na direção da editora Patuá, em meio à deplorável prática das editoras capitalistas, preocupadas antes com os lucros que com a literatura e a cultura nacionais.

 

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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