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Paulo Marçaioli

Formado em direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da USP e dono do blog Esperando Paulo

Coluna

A Poesia de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

O heterônimo, ao contrário do pseudônimo, é um personagem, criado pelo poeta, que cria uma obra própria

Navio que partes para longe,

Por que é que, ao contrário dos outros,

Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?

Porque quanto te não vejo, deixaste de existir.

E se tem saudades do que não existe,

Sente-se em relação a cousa nenhuma;

Não é do navio, é de nós, que sentimos saudades.

Não seria exagero dizer que Fernando Pessoa foi o maior poeta em língua portuguesa do século XX. O seu trabalho pode ser alçado ao mesmo patamar daquele que foi a mais importante figura da literatura lusófona de todos os tempos: Luís Vaz de Camões.

No caso de Pessoa, trata-se de um caso único da história da literatura universal; dele originou-se a criação de uma nova forma de expressão poética através da Heteronímia (héteros = diferente; + ónoma = nome). Foi através dos heterônimos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – que deu vazão à sua imaginação e à versatilidade de sua personalidade, para criar o grosso de sua produção literária.

Heterônimos não se confundem com os pseudônimos.

Não há em Fernando Pessoa a pretensão de esconder o seu nome verdadeiro e dar autoria dos seus textos a um pseudônimo, como ocorre com certa frequência, pelas mais diversas razões, a maior parte delas sem uma implicação direta com a obra produzida.

O heterônimo, ao contrário do pseudônimo, é um personagem, criado pelo poeta, que cria uma obra própria. Cada heterônimo tem um nome próprio, uma biografia própria e, sobretudo, um estilo próprio. Não é apenas um nome fictício para esconder a face do poeta. Trata-se da expressão multifacetada de um artista que almeja exprimir suas ideias em diferentes formas de acordo com a percepção de mundo de cada personagem por ele criado.

Ricardo Reis é um médico erudito que vive no Brasil. Latinista por educação própria, seus versos têm um estilo neoclássico, formal e erudito.

Álvaro de Campos, ao seu passo, é, nas palavras de Pessoa, a sua versão mais histérica. Foi um engenheiro naval, cuja educação formal se deu de forma precária num Liceu. O seu estilo é mais experimental, com algumas variações de acordo com a trajetória de vida do personagem. No começo, influenciado pelo modernismo e futurismo. E ao final, recaindo no pessimismo.

Alberto Caeiro, ao que consta, foi considerado o mestre e mais importante poeta criado por Fernando Pessoa. Foi, também, a principal inspiração do heterônimo Ricardo Reis que, no seu prefácio do livro de Caeiro, assim descreve o poeta camponês:

“A obra de Caeiro representa a reconstrução integral de paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os gregos nem os romanos, que viveram nele e por isso o não pensaram, o puderam fazer. A obra, porém, e o seu paganismo, não foram nem pensados nem até sentidos: foram vividos com o que quer que seja que é em nós mais profundo que o sentimento ou a razão. (…) Ignorante de vida e quase ignorante das letras, quase sem convívio nem cultura, fez Caeiro a sua obra por um progresso imperceptível e profundo, como aquele que dirige, através das consciências inconscientes dos homens, o desenvolvimento lógico das civilizações.”

O estilo do poeta, ao contrário de Reis e Campos, é simples, sem a erudição de um e o experimentalismo modernista de outro.

Não teve nenhuma educação, exceto a instrução primária. Viveu a sua curta vida de 20 e poucos anos toda ela no campo.

E é da relação imediata do homem com a natureza que emerge a poesia de Caeiro. Quando se fala imediata, quer-se dizer que a proposta de Caeiro é a do rompimento com qualquer tipo de mediação, através da linguagem, de conceitos filosóficos e de pressupostos ideológicos, entre o poeta e aquilo que descreve.

O horizonte do poeta é aquilo que ele vê. Há sempre, em absolutamente todos os poemas, a primazia do sentir sobre o pensar:

“Todas as opiniões que há sobre a Natureza

Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.

Toda a sabedoria a respeito das cousas

Nunca foi cousa em que pudesse pegar, como nas cousas.

Se a ciência quer ser verdadeira,

Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?

Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deito

Tem uma realidade tão real que até as minhas costas sentem.

Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas”.

Para Caeiro, não há um sentido oculto por detrás das coisas. Ridiculariza os poetas e filósofos que através do pensamento procuram uma significação subjacente a todas as coisas.

Pensar é estar doente dos olhos, pensar é não compreender. O poeta contenta-se a sentir, até porque, “há metafísica bastante em não pensar em nada”, nome de um dos poemas de “O Guardador de Rebanhos”:

O que penso eu do Mundo?

Sei lá o que penso do Mundo!

Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?

Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma

E sobre a criação do Mundo?

Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

E não pensar. É correr as cortinas

Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o Sol

E a pensar muitas coisas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o Sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e de todos os poetas.

Dentro desta proposta, é possível ler os poemas de Caeiro imaginado que as palavras enunciadas pelo poeta tenham saído da boca da própria Natureza. É como se as árvores, as águas dos rios e as pedras estivessem revelando ao mundo a impertinência e despropósito da busca pela atribuição de sentidos às coisas. Se há algum sentido, ele não decorre do pensamento mas da percepção objetiva e direta das coisas, em torno do que se vê, do que se toca e do que se escuta.

Ao ponto do poeta, em mais de uma ocasião, dizer que aquilo que deixa de ver, para ele, deixa de existir.

Em certas passagens Caeiro reconhece-se incidentalmente como materialista e ateu. Ricardo Dias, no seu prefácio, qualifica seu mestre como pagão. Mas sempre há a ressalva, na poesia de Caeiro, que toda forma de nomenclatura para atribuir sentido às coisas é algo despropositado, quando a missão do poeta é a de descobrir o mundo “sem pensar nele”.

No seu conceito de universo não há cabimento de interpretações. “O único sentido íntimo das cousas é elas não terem sentido íntimo nenhum.”, afirma em um dos seus poemas. Num determinado momento diz não acreditar em Deus pelo fato de não poder vê-lo. Para, na sequência, no verso subsequente, assumir a possibilidade de Deus ser uma forma diferente de dizer o que é aquilo que vê e que foi por ele criado, fazendo-o neste caso, o mais fervoroso crente. Com a ressalva de que, se Deus são as árvores, o sol e as pedras, melhor chamá-los de árvores, sol e pedras e não de Deus.

Ao ler a poesia de Alberto Caeiro, há a sensação de estarmos em contato com um homem do campo plenamente aclimatado à natureza ao ponto de sugerir ao leitor se tratar de um de alguém já no limiar da vida, se preparando para a morte – o problema de Deus e da finitude da vida são reiteradamente sugeridos, o que não poderia ser diferente, de acordo com a filosofia do poeta.

Curiosamente, Caeiro morreu jovem. Faleceu aos 26 anos de idade, solteiro, vivendo na casa de uma tia velha, com poucos recursos financeiros.

Tornou-se hoje o maior poeta da Natureza. Não por cantá-la vendo nela belezas e ideias ocultas. Mas por ser o seu porta-voz, podendo-se dizer que nessa poesia, quem fala é o sol, as águas dos rios e dos mares, os ventos, as pedras e as árvores.

Bibliografia:

“Sobre Fernando Pessoa” – Jane Tutikian

“Caiero Triunfal” – Richard Zenich

“Guardador de Rebanhos” | “O Pastor Amoroso” | “Poemas Inconjuntos” – Fernando Pessoa (Org. Fernando Cabral Martins e Richard Zenith).

* A opinião dos colunistas não reflete, necessariamente, a opinião deste Diário

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